Tudo começou na Rua 13...
Considero que cada século deveria produzir os seus próprios clássicos. Infelizmente, às vezes, para grupos minoritários, é necessário que se passe um milênio para que possam adquirir espaços, produzir e alcançar o grosso do público, se tornando os clássicos de que necessitamos. E só assim, em pleno século XXI que posso ler um livro que me fez mergulhar em uma experiência de leitura, sendo possível encontrar pertencimento e se sentir representado em meus dilemas.
O caçador cibernético da Rua 13 é escrito pelo carioca Fábio Kabral. Publicado pela Malê. A obra faz o papel de inserir leitores nacionais no afrofuturismo. Mais que um dos troçentos subgêneros de ficção especulativa, é um movimento artístico, estético e cultural que visa quebrar paradigmas, trazer novas experiências, discursos e projeções de futuro, sem intermediação de pessoas brancas ou depender da visão europeísmo.
Em suas mais de 200 páginas, o romance nos leva a Ketu Três, megalópole ultra tecnológica; cidade de conflitos e contradições. Nosso protagonista é o caçador ciborgue João Arolê. Na infância, ele desejou ser um astronauta. Mas ao descobrir os seus poderes espirituais, acabou sendo recrutado pelas forças de segurança coorporativas da urbe. A partir daí seu maior sonho se distancia e seus questionamentos se aprofundam.
O autor utiliza sua experiência de iniciado no candomblé, através do terreiro Ilê Obá Axé Ogodô, e se apropria muito bem dos conceitos e das imagens míticas da sua religião. São várias referências direta ou indiretas, a maioria de possível origem iorubá. O orixá patrono de Ketu Três é mais conhecido entre o público não candomblecista como Oxóssi, por isso, a temática do caçador é tão ressaltada na trama.
O texto foge totalmente do processo narrativo e das representações tradicionais, que segregam e discriminam negros e povos africanos. Tanto o autor quanto João Arolê protagonizam suas histórias. No Novo Mundo, só há o povo melaninado, forma poética e menos óbvia de dizer que são negros. São muitas as metáforas de conflito étnico-racial, como os “alienígenas” e sua “religião estranha”, falar demais é estragar a surpresa do leitor.
A sociedade é matriarcal e matrilinear. Não existe regulação ou pressão moralista acerca da sexualidade alheia. Bissexuais, lésbicas e homossexuais podem apenas ser, sem correr o risco de pretensos julgamentos sociais. Religião, economia e política não são distantes, ao contrário, possuem uma relação orgânica e menos formalista. O Estado é coorporativo, quase oligárquico.
A urbanização evita a geometrização através da racionalização espacial do quadrado, única forma geométrica criada pelo ser humano. A cidade é formada por círculos, ligados em seu interior pela Rua 13. A tecnologia não é baseada na extração predatória dos recursos naturais, mas sim da força dos espíritos. Ao invés da técnica, recorrem a tradição e usam a espiritualidade como força motriz das máquinas. Magia e tecnologia, fé e razão, esses falsos binômios são extintos aqui.
Apesar de todo o avanço tecnológico e da homogeneidade étnico-racial dos nativos de Ketu Três, aspectos como corrupção, necropolítica e desigualdade social continuam uma constante nessa sociedade de nova composição. O Isote, um movimento mais transgressor que revolucionário, parece não ter fixado raízes ideológicas muito profundas. Espero ver seu retorno em obras futuras.
A trama ou melhor, as tramas se unem ao longo do livro. Uma narrativa cíclica, com vários eventos simultâneos. O mote é a sincronicidade, onde o que se repete com constância é o trauma. É só no fim da obra que as histórias se unificam numa espécie de catarse, onde a redenção do protagonista se inicia, abrindo sua trajetória a novas possibilidades.
A ancestralidade aqui não é um fardo, mas uma base sólida de conhecimento e sabedoria viva e acessível. Um motivo de orgulho, criando redes de sociabilidade. Uma compreensão da realidade baseada na relação entre presente e passado. Joao Arolê também não pode ser identificado apenas como uma continuação de forças anteriores, ele é a sua superação.
O livro tem uma narrativa enxuta, com períodos curtos. Todos os personagens e subtramas possuem desfecho satisfatórios. Uma das mais destacadas é a Jamila Olabamiji, que por sua vez, terá um livro próprio descrevendo sua história e A cientista guerreira do facão furioso.
Senti falta de alguns conectivos durante a leitura. Houve confusão em alguns parágrafos, por exemplo: o personagem falava, mas não começava com travessão; em alguns parágrafos onde o narrador descrevia as acenas, havia travessão como se fosse diálogo de personagem. Não atrapalhou a leitura, mas precisa de nova revisão. Na capa, o nome do autor aparece sem acento agudo no a, fica Fabio, mas é Fábio.
O livro possui orelha de capa com análise do Vagner Amaro, editor da Malê, e orelha de contracapa com biografia do autor. A ilustração de capa e miolo ficam a cargo do ilustrador Rodrigo Candido. A fonte do corpo do texto é African Serif, o que possibilitou a acentuação de muitos termos estrangeiros. O papel é o Pólen 80g. Edição com boa encadernação, edição e preço acessível.
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