RESENHA - Shaira e a Saudade

Maria Jeane Souza de Jesus Silva*

Mestra em Educação e Diversidade - UNEB

CORREIA, Sarah. Shaira e a Saudade. Lura Editorial, 2019.

Sarah Correia é professora e escritora de Monte Santo, sertão da Bahia. Graduada em história e Pós-graduada em História do Brasil pela instituição Centro de ensino Superior Vale do São Francisco de Pernambuco. É autora de A menina que cavava com a caneta que foi publicada pela mesma editora em 2015.

Esta Resenha discorre sobre impressões e significações a respeito da obra intitulada de – Shaira e a saudade –, considerando inicialmente a fala da escritora enquanto mulher branca, nascida em um ‘lugar de privilégio’, que apesar de nunca ter sentido na pele os infortúnios do racismo e/ou outros estereótipos, precisou se descolonizar para escrever. Dessa forma, o olhar de quem lê/escreve parte de “um outro lugar”, tecendo questões que respingam em seu imaginário: trata-se, por acaso de ‘um outro’ que nunca esteve aqui? Ou de ‘um outro’ que volta para nos contar suas histórias de discriminação, exclusão e saudade? Ou talvez, de um “eu” que, com ‘memória de elefante’, tenta combater a intolerância racial, utilizando a leitura como artefato para atingir a égide das mentes leitoras?

Introdutoriamente, a autora chama a atenção para o fato de como tem sido negligenciado pela escola as vozes de escritoras/es negras/os, que parecem traçar as linhas divisórias nos discursos pedagógicos, ou até mesmo um desconhecimento dessa literatura na práxis das/dos educadoras/es. As discriminações de raça são produzidas e reproduzidas em todos os espaços da vida social, inclusive no âmbito familiar e escolar. Desde muito pequenas/os a cultura molda os comportamentos e atitudes de meninas e meninos segundo as normas estabelecidas historicamente. As representações e ausências acerca desse processo influenciam na construção e/ou desconstrução de estereótipos responsáveis pela perpetuação de discursos e práticas discriminatórias.

Com base no título e suas ilustrações, há o destaque para a palavra saudade, que embora, etimologicamente, esse vocábulo só exista na língua portuguesa, em outros idiomas utilizam-se de diversos termos para demonstrar esse sentimento. Vem de "soedade", que já foi "soledade", e que, por sua vez, provém do latim "solitate". Tal, qual Shaira, o romance é uma semente de resistência, lembranças e lutas demarcadas. Constituiu-se em um fio para que meninas/os se reconheçam na protagonista, e se (re)construam enquanto sujeitos plurais e coletivos.

A obra está dividida em seis capítulos, a saber:

Capítulo I, A partida; capítulo II, Memória de Peixe; capítulo III, O Epelho D´água; capítulo IV, A conversa com Deus; capítulo V, Iaiá e capítulo VI, A Imortalidade da Saudade.

Correia (2019) introduz na premissa do livro, a Saga de Shaira que começa nas proximidades de Ouidah, cidade do Reino de Daomé, região do continente africano, conhecida como Costa dos Escravos. Com apenas 14 anos de idade, a protagonista da obra é usurpada de seu país, arrancada dos braços de sua mãe Zarina e de seus irmãos. A autora reitera a difícil travessia dos tripulantes escravizados, as condições sub-humanas vivenciadas durante a viagem nos porões do navio negreiro, um espetáculo fúnebre. Destaca ainda, que na segunda metade do século XIX, já era proibido o tráfico negreiro, porém, assim como a Lei Áurea, Lei do Ventre Livre, Lei do Sexagenário, só funcionaram no âmbito do papel.

Trata-se da luta pela liberdade, numa época em que gente era vendida pela cor da pele como mercadoria. Somando-se a isso, a pequena protagonista foi obrigada a mudar de nome, um ‘pseudônimo’ quem sabe, diriam os adolescentes, nascidos na Era digital – fake/nickname –. Outrossim, fora submetida ao batismo católico, assim como os outros escravos logo que chegaram ao Porto de Salvador. Segundo a crença, era preciso que fossem batizadas/os para não trazerem maus costumes. Dessa forma, Shaira não compreendia por que a cor de sua pele a tornava diferente das outas pessoas, queria ter memória de peixe para não lembrar e não sentir a dor da saudade que sufocava e machucava seu ser.

A escritora montessantense faz um link entre a historiografia do negro viabilizando Luiz Gama, um menino baiano, filho de um fidalgo com uma africana rebelde que foi vendido como escravo pelo próprio pai. A história registra que Luiz Gama reconquistou a liberdade, serviu ao exército e trabalhou como escrevente de polícia; entretanto, foi impedido (pela cor) de cursar a faculdade, mas ainda assim, tornou-se poeta, jornalista e advogado. Embora sem diploma e anel, conseguiu resgatar 500 negros da escravidão em pleno Brasil imperial. A partir de então, ficou conhecido como ‘advogado dos escravos’ e em 2015 foi reconhecido oficialmente como advogado pela OAB e nomeado, por leis federais, como o patrono do abolicionismo brasileiro e heroi da pátria.

A trama dá perceptibilidade e provoca o empoderamento feminino, destaca entre outras protagonistas a personagem Dandara (esposa de Zumbi), que lutou com armas pela liberdade total das/dos negras/os no Brasil, liderava mulheres e homens, e por não se adequar aos papeis/padrões socialmente e culturalmente demarcados (que ainda hoje são impostos a nós mulheres) foi silenciada da história, assim como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, dentre outras. Fazendo jus ao momento sóciopolítico da conjuntura brasileira, em que temos presenciado as tentativas de cerceamento de direitos, outrora considerados incontestáveis, abre um leque na luta pela igualdade de gênero e, qualificação em respeito à cidadania e direitos humanos.

A intertextualidade feita com a leitura do conto – Olhos d’água e o romance memorialístico – Becos da Memória de Conceição Evaristo mostra-nos um registro de vidas silenciadas, à medida que o leitor – em seu meio confortável e privilegiado – transcorre página a página, em busca dessas histórias que também podem contar outras dores do mundo. Em outro momento, a autora nos coloca de frente às violências cotidianas, fruto do ódio racial ou misógino, na qual procura aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados em ambos os livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças.

Mesmo que tardiamente, a escola tem apresentado algumas vozes que foram silenciadas durante a história, a exemplo de Conceição Evaristo, militante ativa do Movimento Negro que conquistou o Prêmio Jabuti de Literatura em 2015, e em 2019 foi a grande homenageada da 6ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, muito ainda precisa ser feito, pois, não basta a promulgação de ‘Leis’ como exemplo, a 10.639/03, que trata do ensino da história e cultura afro-brasileira. “Leis” por si só, não são garantias de sua efetiva realização/efetivação.

São muitas histórias resumidas no romance, muitas dores, saudades, reencontros, o mais importante deles: o de Shaira e sua mãe. “A pequena agarrada a sua progenitora, estava no lugar mais seguro do mundo, nos braços materno!” Neste ínterim, a autora traça as últimas linhas de sua escrita, transformando o enredo num grito de liberdade, esperança e emancipação.