Thomas Pynchon parodia hardboiled em romance psicodélico
No prefácio para edição nacional de “O Falcão Maltês” (Editora Brasiliense, 1984, 193 páginas), o jornalista e tradutor da obra, Ruy Castro, escreveu: “Para ler e adorar o Falcão Maltês, o leitor adulto e experiente só precisa possuir um atributo: saber ler. A linguagem de Dashiell Hammett é seca como um martini, exatamente como seus personagens”.
Vício Inerente (Cia das Letras, 2010, 459 páginas), do romancista Thomas Pynchon, não subverte as especificidades de O Falcão Maltês, mas parodia as premissas abstraídas desta e de outras obras criadas pelo próprio Hammett, como também aquelas inventadas por Raymond Chandler e James M. Cain (os detetives de Hammett e Chandler são explicitamente mencionados na obra). Premissas que formam o gênero hardboiled: a luta do detetive durão, cínico e implacável contra a corrupção social e sistemática que degrada a sociedade.
A paródia pode ser basicamente definida como uma imitação satírica. Larry “Doc” Sportello, o protagonista de Vício Inerente, é até cínico, mas está longe de ser durão e implacável. Ele é hippie, descontraído, atrapalhado, engraçado e maconheiro. Um personagem picaresco.
O enredo não se passa numa sociedade brutal e restringida pela Lei Seca, como em Chicago nos anos 1920, onde há a violência gangster que inspirou o surgimento do hardboiled, mas sim na cidade de Los Angeles em 1970, época da contracultura. A Guerra Fria permeia o conflito geopolítico internacional. Richard Nixon está na presidência dos EUA.
Pynchon, como romancista talentoso e inovador, acabou construindo alguns paradigmas que tornam sua obra peculiar. O romance pynchoniano tem suas próprias características, como o estilo narrativo divagante. Dessa forma, em Vício Inerente não se vê uma “linguagem seca como um martini”, mas sim uma linguagem digressiva e psicodélica, como uma experiência propiciada pelo uso de drogas. Há até momentos que a viagem é tamanha a ponto de confundir o leitor: não sabemos se aquilo está de fato ocorrendo na trama ou se é mero devaneio dos personagens.
Além disso, há muita paranoia, múltiplos personagens e tramas paralelas, outras marcas tipicamente pynchonianas. Tudo começa quando Doc é visitado pela ex-namorada Shasta Fay Hepworth, que pede para que ele investigue um suposto plano tramado pela esposa do amante dela. A coisa então descamba para um enredo complexo com muitas perguntas e muita gente envolvida. Há corrupção policial, infiltrados a serviço do governo, neonazistas, tráfico de drogas, uma organização criminosa singular e até uma conversa muito louca sobre um continente perdido.
Vício Inerente é divertido. Tem uma escrita agradável e atraente, apesar de haver alguns parágrafos que exigem fôlego do leitor. É uma inteligente homenagem pós-moderna ao hardboiled.
*Texto alterado em 25/10/2020 para corrigir informação sobre o enredo do livro.