TODA FORMA DE SER MULHER: A EMANCIPAÇÃO FEMININA PELA PALAVRA

"A palavra é o meu domínio sobre o mundo"

_Clarice Lispector.

'Mas afinal, o que estas mulheres escritoras querem?[1]

Assim indaga Lindevania Martins, poeta e defensora pública, na sua apresentação à primeira Antologia poética da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). É a mesma quem tece a resposta tão pontual quanto ela e as demais integrantes daquele instigante coletivo literário - o primeiro a inaugurar a Praça dos Poetas - "querem suplantar a posição de musa e objeto, não mais 'aquela de quem se fala', aquela que sofre a ação, mas aquela que é ativa..."

Jamais imaginei que aquele dia 03 de Outubro iria me trazer tanta surpresa, admiração e me colocar mais uma vez ante de uma reflexão a respeito de como nossa realidade distorce os gêneros e, sobretudo, aquilo que é a "mulher", esse "ser de outro mundo", tão assim colocado pela mentalidade masculina como engodo retórico para após colonizar-lhe a mente e não menos o seu corpo às grades de um encantamento trovadoresco enviesado e que, em nossa sociedade, mais suaviza o potencial feminino do que o enaltece e elogia como ilude pretender; quer mesmo é alienar-lhe o mundo.

Por séculos em nossa cultura patriarcal, fundada na religiosidade cristã, a mulher representa o dócil e o silêncio, o belo e passivo, e o que a essa regra fugia demonizava-se, tornava-se bruxa, queimava-se; era loucura, histeria e, mais recentemente, era uma ofensa contra a "família", a moral e os bons costumes.

Só se exaltava a beleza e esses traços frágeis da mulher, como se não houvesse nela decisão ou aptidão para dominar o cavalo e salvar-se do castelo e lobo mal (como se ela quisesse ser "salva!").

Muitas poesias foram e são ofertadas a inúmeras musas nesses moldes e causa estranheza uma mulher dar em cima de um homem, ter atitude, tomar a iniciativa, a fala, o discurso. Afinal, por que ela não pode? Desculpas não faltam.

Como iniciamos, é bem verdade que é no domínio da "Palavra", a mulher se irromperá então das cadeias simbólicas que controlam sua dialogização com o mundo e seu corpo.

_A mulher tomar a palavra?

_É uma transgressão!

Cansamos de ver tais reações misóginas a essa "ousadia" no cotidiano, no Brasil e no Maranhão!

Rápido alguns machos se levantam, desqualificam a tentativa, fazem chacotas, rotulam-nas de ineptas e, quando não, recrutam do meio destas aquelas que os ajudarão como agentes na missão de desfazer e/ou barrar o grande avanço: a mudança nas relações sociais e o modo novo de se ver o mundo por igual. Sem inferiores e superiores, mas capazes; todas e todos.

Esse "construir-se como sujeito de discurso e revolucionado o mundo" tem sido a tarefa mais arguta dessas mulheres das Letras que tem como referencial mulheres do esteio de Maria Firmina dos Reis, a primeira literata do Brasil, preta e maranhense. De sorte que jamais se pode tentar a misoginia malfadada projetar nas mulheres o estigma da inépcia.

Estou lendo os poemas e prosas de "Toda Forma de Ser Mulher" e de início fui tomado por cada advertência, tomando nota de cada verdade e questão. As mulheres são donas de si, invisibilizadas apenas por uma força piegas e ridícula sob o pretexto da "moral" que mais são elas, nas prisões domésticas, mantenedoras por séculos sob a ideologia do medo, e não o patriarcado.

Quando as mulheres finalmente se emanciparem (penso que isso já aconteceu, faltando aos homens e mulheres desatentos tomarem consciência disso) pelos auspícios do Logos, autoconfigurando-se na teia social, não duvido que os homens também serão livres de algo igualmente nocivo à sua própria humanidade.

Porém os reacionários - moralmente hipócritas e já em crise crônica - sempre apontam meios em retrocesso e contra o avanço libertário inevitável. Vejamos:

A mentalidade misógina faliu como seu próprio "falo" flácido e sem discurso; reluta ao aparecimento da mulher, projetando sua apoteose como um escândalo. Sua baixeza busca atingir o brio desse triunfo e vemos esses faniquitos nos comportamentos, tiques e em todo um construto velhaco para tornar a fêmea invisível.

Sejamos francos, o projeto machista em ruínas é uma tragédia no próprio nascedouro, pois o homem que vive da "moral" a sabota por conta, não respeitando a mulher; doutrinou-a desde cedo para manter o estado das coisas como se a guardiã fosse do sistema que irá lhe anular dali então.

Como não lembrar de personagens como Jesuíno que amava Dona Mocinha [2], mas não sabendo demonstrar esse amor - pois postura de um "homem fraco" à época - o levou a matá-la (como ainda ocorre) com seu amante que soube cativá-la e qual seu marido rústico não aprendeu. Dona Mocinha queria o simples beijo do marido; ensiná-lo a amar e não mais ser "usada" num arribar de saia onde sentia tudo, menos o prazer. Prazer este que a mesma tinha todo o direito de desfrutar.

Jesuíno a assassinou sem jamais perder "os cornos" da misoginia; mal-amado, não soube abdicar para o seu bem-estar, condenado ao lugar cômodo de um sistema em transe que lhe fez dizer a frase tísica "este mundo não me pertence mais". Ora, a mudança ainda tardia, viria. Ela sempre vem!

A construção arcaica desse cruel paradigma faz mal ao próprio homem que seria mais livre se tornasse também livre o segundo sexo. A não demonstração do afeto e de seus sentimentos tornou o macho um ser duro contra si mesmo e isso é consequência e prova cabal de ser vítima do sistema que mantém pela força como ideologia e ethos político.

Sem volta, o sistema terá de se reinventar ou contrapor-se com mais violência à ponta de faca na qual, sem sucesso, se debate. Aliás, até quando tantas mulheres serão mártires dessa reação infantil?

É necessário, por isso, muita atenção com importante agenda, para que não se torne uma 'revolução traída', visto que as forças patriarcais sempre tentam docilizar a revolução feminina, "aceitando-a" apenas em sutileza com seus vários nós de contra-insurgência - o que não difere da mesma imposição feita a outros movimentos insurgentes como o negro e outros - recrutando as exigências femininas para a propaganda 'normalizadora' como se dela fosse sócia.

É com folga que se lê a Antologia ilustrada com a arte poética de mulheres agentes dessa transformação na sociedade e na literatura nacional. A palavra-construção de Eliane Morais ( Minha Alma Feminina), Sharlene Serra (Multiplicidade da Mulher), Anna Elizandra (Prosa da Mulher que Não Existe), Janayna Ricoly(Mulher de 40)), Wanda Cunha (Questionamentos), Heloísa Sousa(Amadurecer), Luiza Cantanhede(Trajetórias), Carla Sílvia (Um Diário de Lacunas), e a jovem revelação, Vitória Duarte, com sua "Segunda Pele", cada uma a seu modo, nos fazem enxergar um mundo peculiar que é o nosso próprio em mais detalhes e cores.

Essa mulher "que é dona do próprio corpo e que dita as regras do seu jogo" ou ainda a "que arrepia e que causa agonia", como cantou a poeta Adriana Bezerra em "Mulher em Si", é a mulher real a que nós 'homens no caminho', devemos somente contemplar e deixar ser, como manifestação do que sempre existiu nas brumas de nossa existência, nossa revelação.

Ainda dentro desta mensagem poética natural da revolução sexual feminina - que vem dando frutos tímidos desde a pauta "meu corpo, minhas regras" - deve-se adotar a noção de que o prazer não é um triunfo masculino. Além de dar prazer, a mulher deve receber em troca como curso normal do orgônio que versou Reich [3]. E tal elas hoje exigem como seu direito por tanto tempo negado: o direito ao seu corpo colonizado, o direito a sentir o prazer-poder.

Assim, as rupturas psicológicas se façam e o homem compreenda ser também um dos meios pelo qual a mulher obtém prazer; "objeto" do qual desfruta tanto quanto - ainda mais e com mais intensidade, diria. Pois não podemos aceitar um mundo que pondera e se assusta ante a afirmação de que a mulher também gosta de sexo tanto ou mais que o homem.

E falar de revolução me faz lembrar de mulheres, trazendo-me o anseio de Rosa Luxemburgo, - líder revolucionária assassinada na Alemanha a pontapés, tendo o crânio destroçado e jogada no rio Spreel - o de uma sociedade nesses moldes: humanista [4]. O mundo não só dos homens ou das mulheres, mas de ambos e, sobretudo, igual. No sentido de que todas as exigências e necessidades humanas fossem atendidas com justiça e respeito, sem que fizéssemos da pulsão para a vida um "pecado original" ou mesmo uma neurose e vivência traumática.

O mundo de Rosa Luxemburgo surge, queiramos ou não, e é um mundo bom onde todos caberão e viverão sua liberdade, seus estilos de vida e sua HUMANIDADE.

Sem mais delongas, minhas reflexões são um esforço de alguém marcado pelas mesmas manchas retrógradas identificadas. Porém, qual um aprendiz, busca conhecer e conceber na rica e promissora escrita de mulheres literatas - sejam da AJEB, sejam de qualquer lugar - o vislumbre de um novo mundo.

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Jeanderson Mafra, é postulante a poeta, escrivinhador de ocasião, autor do livro "Fragmentos de Mármore" (2017), ativista cultural no movimento literário "Sarau Poético Ludovicense", membro da Sociedade de Cultura Latina do Brasil - MA e pai do Calel. É também servidor público, graduado e mestrando em Letras; e nas horas vagas posa de prosador.

[1] Toda Forma de Ser Mulher. Anna Liz (Org). Lucel; São Paulo, 2020.

[2] Gabriela, Cravo e Canela. Jorge Amado.

[3] A Função do Orgasmo, Wilhelm Reich.

[4] Rosa Luxemburgo.

Jeanderson Mafra
Enviado por Jeanderson Mafra em 11/10/2020
Reeditado em 19/10/2020
Código do texto: T7084900
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