Mário de Andrade e o turista aprendiz vasculhando o Brasil
Mário de Andrade e o turista aprendiz vasculhando o Brasil
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Mário de Andrade, Euclides da Cunha e Milton Hatoum são escritores muito diferentes. Compartilham, porém, um gosto comum: adoram Belém do Pará. Tem-se impressão de que preferem Belém a Manaus, ainda que Milton Hatoum seja amazonense: Hatoum contou em entrevista que já deixou o bairrismo há muito tempo. Euclides desesperou-se com Manaus. Lá ficou encalacrado antes de partir para uma expedição de reconhecimento. Quando de sua estada na Amazônia, em Manaus tudo deu errado. Encantou-se com Belém. O escritor modernista Mário de Andrade (não sei se leu Euclides nesse pormenor) também: “Belém foi feita para mim e caibo nela como mão dentro da luva”.
É o que lemos em “O turista aprendiz”, um relato de viagem que Mário de Andrade registrou em 1927. Partiu de São Paulo, em 7 de maio daquele ano, passando pelo Rio, Vitória (não desceu do navio), Salvador, Maceió, Recife, Fortaleza, Belém, Santarém, Manaus, Esperança, Tabatinga, Ioquitos, Santa Rita, Caiçara, Sapucaiaoroca, Humaitá. Entrou no Peru. Na volta, parou em Belém, passou por São Luis, Fortaleza, Areia Branca, Natal, Rio (onde foi recebido, entre outros, por Sérgio Buarque de Holanda), chegando em São Paulo, em 12 de agosto. Foram três meses de peregrinação. Viu muita gente, muitos lugares, muitas coisas. Um Brasil que hoje lhe seria irreconhecível.
Mário de Andrade viajou na companhia de Dona Olivia Guedes Penteado (de tradicional família paulista, a quem chamava de ‘rainha do café’), de Margarida Guedes Nogueira e de Dulce do Amaral Pinto (que era filha de Tarsila do Amaral). Cada um atendeu às próprias despesas, enfatizava Mário, que não queria ser reconhecido como secretário de Dona Olivia. Uma excursão extravagante, principalmente se fixamos a data: 1927. Eram três mulheres sofisticadas e um intelectual perambulando por regiões inóspitas.
Os relatos, reunidos em livro, são simpatiquíssimos. Revelam aspectos do Brasil no olhar de um observador irônico, paulistano de cultura, cosmopolita de leituras infinitas. Mário afirmava que o Rio era uma cidade feia, embora dissessem que era bonita... Quando pararam em Maceió, Mário constatou que havia tantas malas do correio, mas tantas, que se deduziu que a capital alagoana era uma cidade muito desenvolvida em literatura epistolar... Mais tarde, ao se aproximar de um grupo na Amazônia (os Pacaás), se reconheceu como bastante versado em línguas, “falando o alemão, o inglês, o latim e o russo com desenvoltura, além dos (...) regulares conhecimentos de francês, tupi, português e outras falas”, pelo que, ironizou, logo se familiarizou com o idioma local, entendendo muito do que estavam pensando e se comunicando. Entendia tudo. Será?
Mário de Andrade protagonizou também o antropólogo. Impressionando-se com usos e costumes de determinado grupo registrou que “estavam inteiramente nus e com o abdome volumosíssimo pintado em duas rodelas de urucum, uma de cada lado, tudo aveludando por causa de uma farinha finíssima bem parecida com pó-de-arroz, esparzida por cima (...)”. Para aquelas pessoas, o som e a fala eram imoralíssimos. Som e fala exprimiam a mais absoluta sexualidade. Quando sentiam “necessidade de fazer necessidade” (construção de Mário), faziam “em toda parte e na frente de quem quer que seja, nos pés e nas pernas dos outros, sem a mínima hesitação, com a mesma naturalidade com que o (...) caipira solta uma cusparada”. O espirro, por outro lado, era interdito. Quando sentiam necessidade de espirrar, saiam numa disparada louca, entrando em um mato solitário, escondendo-se, e espirrando em solidão. Com muita educação. Para aquele povo isolado, “falar era o máximo gesto sexual”. Os atos de procriação, por outro lado, ocorriam em qualquer hora e lugar, na frente de todos. A noite de núpcias era uma falação, que não acabava mais...
O leitor (contemporâneo principalmente, o livro tem quase 100 anos) não sabe se o relato é blague literária ou constatação séria e simpática. Nesse último caso, o que pior, o ar de assombro (se verdadeiro), revela-nos algum etnocentrismo que não se esperaria do autor de “Macunaíma”. De um outro grupo, que denominou de Do-Mi-Sol, por causa dos sons que emitiam, constatou uma “matercracia comunista, com distribuição coletiva das ocupações, tendo por base a injustiça”. Ninguém se queixava de nada. Pode-se confiar na descrição? Científica ou literária? Objetiva ou diletante? Real ou imaginária?
Mário oferece-nos além disso vários relatos gastronômicos. Gostou do pato com tucupi, do leitão com farinha d’água, da compota de bacuri. Tomou sorvete de murici, ao qual atribuiu gosto de parmesão ralado com açúcar. Adorou o tambaqui (que disse ótimo, de uma delicadeza superfina). Comeu tartaruga com recheio de tartaruga, que reputou uma obra-prima. Provou sorvete de graviola. Afirmou que o gosto era de graviola mesmo, incontestável. Afiançou que o guaraná tinha um gosto vazio. Comeu ovo de tracajá, batido com farinha e sal. Queria voltar para o casquinho de caranguejo. Sentiria saudades dos filés de tartaruga.
Chama a atenção a paixão por Belém, “gostosíssima, a melhor coisa do mundo”. Festeja o açaí. Perguntava se havia de fato gostado mesmo do açaí; respondeu: “é dessas comidas locais que, mesmo quando não são gostosas, participam de tal forma da identidade local, que fica um muro na frente a gente não usar. E é indelicadeza não gostar. O açaí não chega a ser ruim... Pousa macio na boca da gente, é um gosto de mato pisado. não gosto de fruta, de folha. E logo vira moleza, quentinha na boca, levemente saudoso, um amarguinho longínquo que não chega a ser amargo e agrada”. Sentia-se local, intensamente local, tomando açaí, que gostava de todos as formas.
Mário reconheceu a pujança do lugar: “a foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem”; ou, é a prova decisiva “que a monotonia é um dos elementos mais grandiosos do sublime”. Verificava o embarque interminável dos toros de caoba, isto é, do mogno. Regalava-se nos mercados, no entanto, comprando peles de onça, em dias que acordava bem cedinho. Um olhar sensível lamentava as derrubadas. Um olhar talvez menos sensível se aguçava com compras de bens que deveriam estar fora do comércio. Contradições, suspeito que inerentes ao modernismo e aos modernos. Jason Tércio, o grande biógrafo de Mário de Andrade, registra com pormenor esses passos e contradições.
Para quem somos desses temas do direito “O turista aprendiz” tem interessante passagem sobre o direito e as leis. Conversando com um índio que remava, e perguntando o que eram leis, Mário de Andrade teve como resposta a compreensão de que leis eram ordens que o chefe determinava que cumprissem, senão tomavam castigo. Na ingenuidade do remador, ouviu que as leis faziam bem a todos. Percebe-se compreensão intuitiva de um contrato social justificativo de leis comuns, que não se sabe universal. Uma lição de antropologia jurídica, ainda que o autor não tenha pensado nisso, certamente.
Antonio Candido, em depoimento sobre Mário de Andrade, conta que dera uma mancada com o escritor. Candido casou-se com uma prima de Mário (a ilustre professora e pesquisadora Gilda de Melo e Souza). O casamento civil foi realizado na casa onde Mário vivia com a mãe e as primas. Mário havia pedido uma opinião de Candido, sobre o livro “O turista aprendiz”. Preocupado com o casamento, envolvido com outros trabalhos, Candido não teria tido tempo para ler e opinar sobre a obra. No dia do casamento, entregou o livro ao autor, dizendo que leu, que gostou muito, mas que conversariam depois. Uma identidade intelectual entre espíritos superiores autoriza essas liberalidades.
Na leitura de “O turista aprendiz” tem-se a impressão que o escritor modernista lutava contra preconceitos que carregava. Afirmou que poderia lutar contra a ignorância, e que poderia vencê-la. Poderia lutar contra a cultura, mas seria ao menos explicado e compreendido. Contra os preconceitos dos semicultos não registrava esperança ou compreensão. Para Mário de Andrade a ignorância era uma pedra: quebra. Cultura era um vácuo: aceitava. Quanto a semicultura, havia uma consistência de borracha: cedia, mas depois tornava a inchar. A Amazônia mudou. Belém prossegue desafiadora. Ignorância e cultura persistem em guerra permanente.
“O turista aprendiz” é uma belíssima leitura sobre a Amazônia. Desse delicioso livro fica muito forte a lembrança do açaí. Há recordação melhor do que o açaí tomado no banco da pracinha, fitando-se um infinito ponto feliz que nunca chegou, e que ficou na memória que não se apaga?