Júlio Ribeiro, A Carne e a sociedade indiferente ao sofrimento
Júlio Ribeiro, A Carne e a sociedade indiferente ao sofrimento
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
“A Carne”, do controvertido Júlio Ribeiro (1845-1890), é a chocante (para alguns) narrativa de uma mulher sexualizada e independente. Passados 120 anos de seu tumultuado lançamento esse livro ainda hoje provoca e desafia. Uma das obras centrais do naturalismo brasileiro (com forte inspiração em Emile Zola, para quem o autor dedica o livro) “A Carne” também comprova argumento do historiador Sidney Chalhoub: textos literários de algum modo são também fontes primárias para a pesquisa histórica. Vários temas abertos (e doloridos) em nossa história (escravidão, racismo, divórcio, casamento de fachada, violência para com animais) são tratados nesse livro, que estruturalmente não se diferencia de um relato de viagem ou de jornal ou de memória. É um registro que vale como fonte primária.
O enredo é por vezes açucarado. O autor edulcora a realidade. A heroína – Helena (Lenita) Matoso é uma rica herdeira, órfã. Após a morte do pai vai viver na fazenda de um tutor, por cujo filho (também rico) se apaixona. Ilustrada, foi treinada em gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música; era uma enciclopédia ambulante. Forte, “de caráter formado e instrução acima do vulgar”. Além disso, era bonita, muito bonita. Confiram: “morena-clara, alta, muito bem lançada, tinha braços e pernas roliças, musculosas, punhos e tornozelos finos, mãos e pés aristocraticamente perfeitos, terminados por unhas róseas, muito polidas”.
A herança, a beleza e a cultura abriam portas. Não mudou muito. O problema da heroína é a sexualidade que explodia. Ribeiro explorou esse aspecto, em torno da fixação da heroína com o “aguilhão genésico”, e do casamento como uma função de necessidades fisiológicas. Menos amor e mais volúpia. Seria possível? Ao longo da prosa Lenita vai explodir de delírio e desejos. Joga-se para Manuel, o filho do tutor, por quem se desinteressa depois. Tem-se nessa desídia o núcleo de toda uma controvérsia literária. Júlio Ribeiro construiu personagem forte, determinada, que destoava do padrão feminino da época. O fim do livro chocou as leitoras viciadas no romantismo.
No entanto, há outros pontos que chamam a atenção. Nas páginas dulcificadas desse romance o autor refere-se com muita naturalidade a temas como o racismo, o sadismo para com os escravos, a violência, o preconceito para com a religião de origem africana, para com o nordeste (então ainda chamado de “norte”). Nesse último caso, enfatiza a importância de São Paulo, e da região oeste do Estado, que à época principiava em Campinas.
A representação da escravidão é crudelíssima, odiosa. O autor menciona “concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer”. Ou, textualmente, “negro é mesmo bicho ruim, às vezes perde a cabeça”. Ou, ainda, a descrição de um chicote (o bacalhau): “Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio longitudalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem em outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas pernas, e está pronto”. E segue, com a reação: “O administrador abriu o tronco, o negro ergue-se bafo, trêmulo, miserável. Sob a impressão do medo como que se lhe dissolviam as feições”. É uma leitura insuportável, cuja tessitura parece natural ao escritor, e ao público para o qual se dirigia. Mas nos agride. Quando lemos anúncios de jornal, publicados nessa época, a sensação não é muito diferente. Tem-se prova insofismável de uma dívida civilizatória.
Um capataz sádico adiantava-se na tortura do bacalhau. Segundo Ribeiro, “o caboclo tomou posição à esquerda, mediu a distância, pendeu o corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o bacalhau da direita para a esquerda, vigorosamente, rapidamente, mas sem esforço, com ciência, com arte, com elegância de profissional apaixonado pela profissão”. O fecho nos faz envergonhados de nossa história: “As duas correias tesas, duras, sonoras, metálicas, quase silvavam, esfolando a epiderme com as pontas aguçadas. Duas riscas branquicentas, esfareladas, desenharam-se na pele roxa da nádega direito. O negro soltou um urro medonho”. Basta.
Não se pode afirmar nossa cordialidade à luz dessa descrição. Não entenderam Sérgio Buarque de Holanda. Somos cordiais poque pensamos com o coração, com amor, mas com ódio também. Não somos nada cordiais, na acepção comum do termo. Na sequência da surra a salmoura: “o negro deu um corcovo: irrompeu-lhe da garganta um berro de dor sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou”. A brutalidade continua. Lenita tremeu de prazer ao contemplar a cena: “sentia como um espasmo de prazer, sacudido, vibrante; estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas rosadas”. Lenita era uma sádica.
Naturalismo na medula. O que significa, por outro lado, e para nosso horror, que esse tipo de cena ocorria. Reconheço que não se pode tirar um autor de seu tempo. O anacronismo é um pecado mortal historiográfico. Mas o leitor contemporâneo percebe que há limites entre barbárie e civilização. Estávamos naquele primeiro grupo. Mudamos?
A história do Joaquim Cabinda é a que mais assusta no livro. Trata-se de um escravo idoso, mantido na fazenda, onde vivia como um pajé, prescrevendo receitas, conduzindo mandingas, curando, com remédios insuspeitos. A morte de uma escrava, Maria Bugra, levou à morte de vários outros escravos, em circunstâncias parecidas. Padeciam depois de tomarem poções do Cambinda. Coincidência? Chegou-se ao núcleo do mistério. Cambinda confessou. Era o responsável por todas as mortes, pelo reumatismo do dono da fazenda, pelo entravamento da dona dos escravos.
Foi executado. Os demais escravos, que se aliaram ao senhor, porque perderam parentes, se ajuntavam na cena brutal: “Um preto tomou-lhe [querosene], subiu à mesa do carro, começou a despejar petróleo sobre Joaquim Cambinda: o líquido corria em fio farto, claro, transparente, com reflexos azulados, ressaltava do peito piloso do negro, da sua calva lustrosa, embebia-se-lhe nas roupas imundas, misturado, confundindo com o suor (...) Os olhos do miserável revolviam-se sangrentos, seus dentes rangiam, ele bufava. Fósforos! Fósforos! Quem tem fósforos? perguntou o preto, que esvaziou a lata, e que fez desaparecer Joaquim Cambinda sob um montão de sapé”. Chega.
Conduzido pelas sensações de uma linda mulher que descobre a sexualidade, por quem o leitor se afeiçoa, a leitura de “A Carne” também revela os bastidores de uma fazenda paulista da segunda metade do século XIX. O autor sustenta que se vivia o pleno feudalismo no interior da província de São Paulo. Explicava que “a fazenda paulista em nada desmerecia do solar com jurisdição da Idade Média. O fazendeiro tinha nela cárcere privado, gozava da alçada efetiva, era realmente senhor do baraço e cutelo. Para reger os súditos, guiava-se por um código único- a sua vontade soberana. De fato, estava fora do alcance da justiça: a lei escrita não o atingia”. O feiticeiro da fazenda foi linchado e “se alguma coisa chegou aos ouvidas das autoridades da vila, elas não se moveram”.
As autoridades não se preocupavam com a questão do escravo no interior. As preocupações se dirigiam às massas de libertos pobres que se multiplicavam, e que, constata-se com certa margem de certeza, deram início a um pluralismo jurídico que marca normativamente uma sociedade fundada na desigualdade.
Enquanto o leitor de “A Carne” debatia a sexualidade lânguida de Lenita, todos nossos problemas estruturais (racismo, sadismo, desigualdade) desfilavam no contexto de uma perfeita naturalidade. Quem sabe seja esse o significado silenciosamente sórdido do naturalismo. Perdão pela aliteração, preocupação de alguns escritores antigos, com foco na forma, e com displicência para com o conteúdo. Talvez brasileiros sejamos assim. Preocupamo-nos com a métrica do verso, enquanto seres humanos vivem sob a opressão e a violência. Isso precisa mudar.