Jorge Amado, Os Capitães da Areia e a enfermidade crônica da esperança
Jorge Amado, Os Capitães da Areia e a enfermidade crônica da esperança
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Monteiro Lobato, em uma carta dirigida a Godofredo Rangel, datada de 4 de janeiro de 1904, escrevia que os livros ou são fracos, ou são fortes. Os livros fracos ainda poderiam dizer algo no futuro. Os livros fortes diziam tudo já quando publicados, porém enfrentam o tempo, que é implacável com as obras literárias. Pergunta-nos Milton Hatoum se em 10 anos ainda serão lidos best-sellers e autoajuda que hoje dão os mais de cinquenta tons nos recordes de vendagem. “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, desafia essa classificação. É um livro forte, e o é desde quando publicado, e também é um livro forte, toda vez que lido, não importa quando.
Começo com o fim. Os meninos tornaram-se adultos. Um cabeça de greve (Pedro Bala) - - e a greve é a festa dos pobres - -, diz o narrador. Um outro, que na infância furtara estátuas do Menino Jesus, tornou-se padre (Pirulito). Um tornou-se no cangaceiro condenado a 30 anos de cadeia por 15 mortes comprovadas (Volta Seca). Um outro tornou-se pintor obcecado com capotes pretos e moças de cabelos claros bem ralinhos (João José, o Professor). Um dele virou um escroque rufião e vigarista (Gato). Um deles resultou num perturbado suicida (Sem-Pernas). E a mais apaixonante personagem (penso) tornou-se uma linda estrela no céu (Dora). Talvez estrelas sejam de fato projeções cintilantes dos sonhos de quem amamos.
O destino dos “Capitães da Areia” é plantado por Jorge Amado ao longo desse tristíssimo livro. Não há livre-arbítrio para quem não tem pai, mãe, casa, afeto, oportunidades, comida, educação, respeito. A miséria raramente é derrotada pelas chances que muitos carregamos. O acaso tem suas incongruências e injustiças. Não há meritocracia onde não há igualdades reais de competição. O mito do “self-made-man” pode ser uma invenção norte-americana para disfarçar as desigualdades, na mesma medida em que sustentamos o mito da democracia racial, na insuspeita opinião de Emília Viotti da Costa. A relação da miséria com o destino, parece-me, consiste na tensão central de “Capitães da Areia”, que Jorge Amado conclui em 1937. Nesse mesmo ano, sob a desculpa de que nos salvaria do comunismo, denunciando um plano vermelho (Cohen) que hoje sabemos foi forjado, um enigmático político dos pampas dava início a mais uma ditadura em nossa história.
Li “Capitães” pela primeira vez aos 12 anos (corria o ano de 1973). Reli mais tarde. Agora, pela quarta vez, concluo que nada aprendemos, que nada fizemos, e que nada (nem mesmo o livro) nos sensibilizou. Menores abandonados parecem que não existem aos olhos de quem está bem alimentado, até o momento em que atacam. Ah! Então, tornam-se um problema, e a opinião pública, enfurecida, quer discutir a diminuição da maioridade penal e a tolerância mínima para com o menor infrator. Há uma culpa coletiva que predica no problema, pela qual não me esquivo, e nem me defendo com desculpas e evasivas. O assunto é sério demais para achismos.
“Capitães” trata - - pela primeira vez entre nós - - do problema do menor abandonado. Enquanto persistir a insensibilidade e o problema, isto é, enquanto crianças abandonadas forem violentadas, agredidas e humilhadas, não haverá paz. Jorge Amado, à época desse livro, estava no auge de sua literatura de militância. “Capitães da Areia” é o mais denso livro de crítica social que conhecemos. Quem não o leu, está distante da literatura de combate, da estética da tristeza, dos temas fundantes. “Capitães da Areia” é uma leitura obrigatória, para quem tenhamos entre 8 e 80 anos.
A galeria de personagens (dramatis personae) é indicativa da ampla sensibilidade do autor. Pedro Bala, o líder dos meninos, tem concepção muito própria de lei e de ordem. No entanto, Jorge Amado o joga na vala comum na cena da violência sexual do areal. Naquele momento Pedro Bala é um bicho e o leitor tende a repudiá-lo. É redimido mais tarde (não sei se há redenção) na cena da “cafua”, uma cela horrível do reformatório. Sem-Pernas é o coxo que buscava ternura, provocava compaixão, e em seguida traía quem nele confiava. Era sua função despertar comiseração e colher informações para as ações do bando. Em certa passagem do livro Sem-Pernas é aceito e acolhido em uma casa. A senhora que o recebia havia perdido um filho, com a mesma idade de Sem-Pernas. O menino vê-se em face de um dilema. Não perdoava a si mesmo nem mesmo nos momentos em que a vida poderia ser boa. Traiu os que lhe acolheram. O leitor, porém, encontra profundas razões para sua atitude.
Volta Seca é o afilhado de Lampião, o cangaceiro. Em permanente estado de vingança, aflição e ódio, não perdoava policiais, que matava recorrentemente. Pirulito é o papa-hóstias, beato de raiz, místico, prisioneiro de um maniqueísmo ingênuo, que nos indefesos é ainda mais perverso. Dora, filha de Estevão e de Margarida (que morreram de varíola), irmão do pequeno Zé Fuinha, é arquétipo de uma brava mulher nordestina. Jorge Amado a assemelha a Rosa Palmeirão e a Maria Cabaçu. Dora será mãe (metaforicamente), irmã, companheira e líder moral dos capitães da areia. É o coração precocemente partido, que se tornará uma das mais lindas estrelas do céu. Há também um menino rico, nojento para o leitor sensível, que pretendeu possuir Dora, mas que desistiu porque ficou com medo de se contaminar com varíola.
Há muitos personagens interessantes. João Grande, cujo pai morreu em um acidente. Há o Padre José, que nos remete à preocupação social que marcou a teologia da libertação. Indispôs-se com o clero porque verdadeiramente acreditava na redenção daquelas crianças. Há o diretor do reformatório, cuja maldade ninguém virá que suplante. Há o Gringo, que nos remete a estereótipos de comerciantes libaneses.
Há cenas inesquecíveis. Refiro-me à cena do carrossel japonês, uma das mais líricas do regionalismo nordestino. Meninos esfomeados e marcados pela violência transcendem das tragédias que viviam no pequeno tempo em que passeavam nos cavalinhos iluminados por luzes mágicas.
“Capitães da Areia” denuncia a violência dos reformatórios infames. Foucault (habituado a problematizar fórmulas de dulcificação de corpos e mentes) certamente redigiria um nervoso apêndice para “Vigiar e Punir”. “Capitães da Areia” explora outros dramas, a exemplo da cena da solteirona feia se atracando com o Sem-Pernas e a cena da prostituta Dalva aninhada com Gato. Se conhecesse “Capitães de Areia” Foucault escreveria mais um volume (ficaram então quatro) de sua “História da Sexualidade”.
Em “Capitães da Areia” a técnica narrativa é encantadora. Jorge Amado abre o livro com imaginários excertos de jornal que dão conta da periculosidade do grupo de crianças, apontados como delinquentes incorrigíveis. É desafiadora a menção ao menino Raul Ferreira, bem nascido, neto do Comendador cuja casa fora invadida pelos capitães. Jorge Amado retrata a típica ingenuidade de crianças afetadas, afastadas da realidade, cujos pais amortizam a dureza da vida com tapetes de borracha.
Registro alguma falta de verossimilhança em algumas passagens da narrativa. Opinião minha, assumo qualquer crítica. Por exemplo, o fato de Dona Ester receber Sem-Pernas em sua casa, como se fosse o filho que perdeu, com concordância do marido, e com toda aquele carinho que suspeito inexistente na vida real. A passagem não prejudica o conjunto narrativo, e muito menos o desate dessa poderosa história.
Na releitura desse clássico concluo que enquanto tivermos crianças em situação de penúria e de marginalidade e de humilhação, “Capitães da Areia” nos lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente seria apenas uma referência bem-comportada, e certamente insuficiente, no enfrentamento de um fracasso que se resolve no plano de políticas públicas comprometidas com uma sociedade mais justa. É um livro para todos os tempos. Mia Couto, importante escritor moçambicano, muito influenciado por Jorge Amado, parece agradecer ao nosso escritor por ter libertado a língua portuguesa dos cânones e da tradição da literatura de Portugal.