"O exorcista" de William Peter Blatty & "Exorcismo" de Thomas B. Allen: o livro que inspirou o melhor e mais assustador filme de terror da história e o livro que conta o caso real que inspirou ambas as obras
Nota inicial: resenha com vários spoilers.
“O exorcista” de William Peter Blatty (em dezembro de 2019) e “Exorcismo” de Thomas B. Allen (em fevereiro de 2020), livros que estão relacionados diretamente com o filme “O exorcista”, de 1973. A obra de Blatty contribuiu para a elaboração do roteiro da premiada película cinematográfica. Já a obra de Allen conta a história do suposto caso real de possessão demoníaca de uma criança, na década de 1940, nos Estados Unidos.
O CASO REAL
No final da década de 1940, nos Estados Unidos, padres da Igreja Católica Romana realizaram uma série de rituais de exorcismo em um garoto anônimo, de 14 anos (nascido em 1935), identificado como “Roland Doe” ou “Robbie Mannheim” em todos os documentos existentes sobre o caso. O relato mais antigo foi feito pelo padre Raymond J. Bishop, que participou destes rituais, na forma de um diário.
O caso se tornou notório em meados de 1949, através da publicação em jornais de relatos anônimos sobre esse episódio. Segundo pesquisas feitas pelo historiador Thomas B. Allen, autor de um dos livros objetos da presente resenha, o garoto Robbie nasceu em uma família luterana, que viveu na cidade de Cottage City, em Maryland. Ele era filho único e dependia dos adultos que viviam na mesma casa como companheiros de brincadeira. Um destes adultos era a tia espiritualista Harriet, que apresentou ao garoto uma tábua ouija.
Após a morte de tia Harriet, a família começou a escutar ruídos dentro de casa, móveis se arrastando e objetos voando pelo domicílio, sempre que o garoto Robbie estava por perto. Posteriormente, o próprio garoto começou a sofrer de terríveis surtos. A família buscou a ajuda do pastor luterano Luther Miles Schulze, que tinha estudos com parapsicologia. Robbie, com permissão dos pais, foi dormir na casa de Schulze. Este, durante o passar da noite, teria testemunhado fenômenos de poltergeist. Assustado e impressionado, Schulze aconselhou os pais a procurarem um padre católico.
A família buscou ajuda no Hospital Universitário Georgetown, uma instituição jesuíta. Lá, o padre Edward Hughes iniciou um ritual de exorcismo que acabou interrompido quando Robbie, se debatendo, soltou uma das mãos que estavam amarradas, arrancou uma mola do colchão, e feriu o padre no braço com um golpe.
Após o episódio frustrante, a família viajou para a cidade de St. Louis, onde se hospedou na casa de parentes. O primo do pai de Robbie contatou um de seus professores na Universidade de St. Louis, o citado padre Raymond J. Bishop que, acompanhado de outro religioso, William S. Bowdern, visitaram o garoto. Na visita, teriam presenciado a cama de Robbie tremer sozinha, objetos voando e o garoto, em surtos violentos, dizer obscenidades e insultos com forte aversão a coisas sagradas/religiosas. Após isso, os padres obtiveram a permissão para iniciar uma série de exorcismos, utilizando o Ritual Romano como guia.
O exorcismo foi conduzido no Hospital Alexian Brothers, em South St. Louis, Missouri, posteriormente implodido. Outros padres jesuítas ajudaram nos rituais, destacando-se William Van Roo e Walter Halloran, que teria testemunha palavras como “mal” e “inferno” aparecerem no corpo de Robbie. Halloran ainda teria tido o nariz quebrado após receber um soco de Robbie, durante um dos rituais.
Após vários dias de desgastantes rituais, Robbie deixou de ter os surtos e, ao que tudo indica nas pesquisas de Allen, teve uma vida normal.
“O EXORCISTA”, LIVRO DE WILLIAM PETER BLATTY
Publicado originalmente em 1971, “O exorcista” é um romance de terror do escritor estadunidense William Peter Blatty.
Blatty, quando era estudante na Universidade de Georgetown, tomou conhecimento dos boatos sobre o exorcismo de Robbie e investigou, por conta própria, a história. Possivelmente, Blatty teve acesso aos diários do padre Bishop. Impressionado com os relatos, Blatty escreveu um romance baseado neles, fazendo alterações na história. Blatty substituiu o garoto de 14 anos Robbie por uma menina de 11 anos, chamada Regan. Substituiu o local do hospital para uma residência. Ao invés de um grupo de padres jesuítas, no romance optou por uma dupla de padres jesuítas: Lankester Merrin, um personagem mais idoso, que teria experiência com exorcismos, após ter conduzido um longo ritual na África contra o demônio Pazuzu, e Damien Karras, mais jovem, que passava por uma crise de fé associada ao falecimento de sua mãe.
Na trama, procurado pela mãe de Regan, ateia, após a filha ter sido consultada com inúmeros médicos sem sucesso, Karras concorda em visitar a menina como psiquiatra. Inicialmente cético, ele entrevista a possuída Regan, pesquisa em vários livros e, após recolher provas, solicita e obtém a permissão para iniciar o exorcismo, conduzido por Merrin. Este percebe que a entidade que aflige Regan é o mesmo Pazuzu, demônio que enfrentou no passado.
“O EXORCISTA”, FILME DE WILLIAM FRIEDKIN
Em 1973, o diretor William Friedkin resolveu adaptar o romance de William Peter Blatty que, por sua vez, fez o roteiro e auxiliou na produção. Embora o livro seja mais completo, devido à parceria, o filme é bem fiel à história escrita.
O filme foi sucesso de bilheteria e foi aclamado pela crítica, se tornando o primeiro filme de terror a concorrer ao Oscar de melhor filme. Foi indicado a outros nove prêmios: atriz (Ellen Burstyn), ator coadjuvante (Jason Miller), atriz coadjuvante (Linda Blair), diretor, roteiro adaptado, fotografia (Owen Roizman), edição (Jordan Leondopoulos, Bud S. Smith, Evan Lottman e Norman Gay), mixagem de som (Robert Knudson e Chris Newman), design de produção (Bill Malley e Jerry Wunderlich). Venceu nas categorias de melhor roteiro adaptado e melhor mixagem de som.
No prêmio Globo de Ouro, foi indicado em quatro categorias: melhor filme (drama), melhor diretor, melhor atriz coadjuvante, melhor roteiro (William Peter Blatty). Não chegou a vencer.
São notórias as reações do público durante as primeiras exibições do filme nos cinemas. Várias pessoas passaram mal com as cenas mais fortes. Alguns cinemas chegaram a distribuir sacos de enjoo ao público.
“EXORCISMO”, LIVRO DE THOMAS B. ALLEN
Publicado originalmente em 1993, “Exorcismo” é um livro-reportagem do já citado historiador Thomas B. Allen. A obra é o resultado da pesquisa detalhada de Blatty sobre o exorcismo do garoto Robbie, conforme citei no início da presente resenha.
Allen oferece no livro o consenso dos especialistas de hoje, ou seja, de que Robbie era apenas um garoto profundamente perturbado, com nada sobrenatural nele. Igualmente, ele deixa para que o leitor tire suas próprias conclusões. Para que fosse perfeito, faltou apenas um olhar mais cético sobre todos os pormenores lançados no livro. Visivelmente, Allen quis agradar tanto religiosos quanto os céticos, o que para mim não deixa claro, de forme inequívoca, a opinião do autor.
EDIÇÕES
A edição que li de “O exorcista” de William Peter Blatty foi lançada pela editora HarperCollins Brasil. Possui uma capa bem assustadora, que chamada a atenção das pessoas quando me viam lendo o livro na rua, gerando-me gargalhadas internas. Foi lançada em um box que traz ainda uma outra obra de Blatty: “a nona configuração”.
Já a edição que li de “Exorcismo” de Thomas B. Allen foi lançada pela Darkside Books e é um dos projetos gráficos mais interessantes que já tive em mãos. Traz anexos interessantes, incluindo o diário de Bishop. Atrás da capa há uma representação da tábua ouija. Para brincar com ela, há um marcador de página em forma de ponteiro. A capa é dura e, a cruz ilustrada na mesma, possui um relevo áspero diferenciado. O livro possui página em um tom mais creme, que favorece a leitura, bem como fita de tecido para marcação de página.
IMPRESSÕES
Tanto o livro de Blatty quanto o de Allen são ótimos.
Allen conduz uma reportagem detalhada, criteriosa e imparcial, bem redigida. É notável seu esforço em pesquisar diretamente os diários do padre Bishop, bem como outras fontes. A reportagem é interessante tanto para um leitor religioso quanto para um leitor cético, como eu.
Por sua vez, Blatty cria uma narrativa que traz contornos mais sobrenaturais e dramáticos à história. O que chama a atenção são as diferentes camadas apresentadas: o duelo do bem contra o mal, o drama de uma mãe querendo salvar a filha, o padre que busca recuperar a própria fé, o ceticismo versus a religiosidade. Personagens e ritmo bem desenvolvidos contribuem para uma leitura viciante e arrebatadora. Mesmo já tendo visto o filme, a leitura do livro enriqueceu a história, favorecendo a assimilação do universo criado por Blatty. Como história de terror, tanto no livro quanto no filme, é assustador ao dar ênfase aos dramas humanos, em detrimento do susto apelativo e fácil.
OPINIÃO E CONCLUSÃO
Embora sejam citadas pessoas reais no livro de Allen, e exista um documento detalhado do episódio (o diário de Bishop), não se pode concluir que tudo isso seja real. Ao longo da história humana, foram chamados de possessão demoníaca várias das doenças da mente existentes. O desenvolvimento gradual da medicina psiquiátrica fez com que esses casos diminuíssem.
Casos de possessão demoníaca ainda são apresentados em algumas religiões cristãs, especialmente no espectro da igreja evangélica, onde pastores, supostamente, realizam exorcismos aos gritos em fiéis, quase sempre, de origem humilde. É um espetáculo degradante e bizarro, apresentado também em canais de televisão comprados por líderes religiosos, que se enriqueceram com o dinheiro do dízimo de fiéis. Quando não se trata de uma fraude, de uma encenação, pode-se facilmente atribuir tais possessões à histeria coletiva, provocada por sugestões hipnóticas em pessoas suscetíveis. É algo documentado e estudado pela Psicologia. Nada de sobrenatural.
Boa parte das referências de Allen são boatos e é perfeitamente possível que os relatos tenham sido exagerados. A possibilidade de fraude não pode ser descartada. Lembremos que a família do garoto Robbie era religiosa, o que a tornava suscetível. E o próprio Robbie pode ter sofrido de doença mental ou abuso sexual – ou fabricou toda a experiência, opinião manifestada pelo próprio Allen em meados de 2013. Ainda segundo Allen, o padre Halloran “expressou seu ceticismo sobre possíveis eventos paranormais antes de sua morte”.
Portanto, possessões demoníacas, quando não se tratam de teatro deliberada e irresponsável, são resultado de histeria instigada por crenças religiosas ou, simplesmente, são boatos, mentiras aumentadas pelo famoso telefone sem fio e caracteriza a história de origem das lendas e das próprias religiões.
Isso, naturalmente, não impede que possamos apreciar obras que abordem a questão. A obra de Allen é um bom exemplo de pesquisa jornalística. Por sua vez, a obra de Blatty é uma fantasia incrível, bem desenvolvida, que instiga os mais diferentes e interessantes questionamentos.
Por fim, tanto o livro de Blatty quanto o filme que ele inspirou, são uma ótima amostra do que de melhor na literatura e no cinema de terror.
NOTA (“Exorcismo” de Thomas B. Allen): 4/5 (ótimo).
NOTA (“O exorcista” de William Peter Blatty): 5/5 (excelente).
FICHAS:
ALLEN, Thomas B.: tradução de Eduardo Alves. Exorcismo. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2016, 2ª edição, 272 páginas. Título original: Possessed.
BLATTY, William Peter: tradução de Carolina Caires Coelho. O exorcista. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2015, 1ª edição, 330 páginas. Título original: The exorcist.
P.S.: Caso tenha gostado do que escrevi, visite https://mftermineideler.wordpress.com/