"O nariz" de Nikolai Gógol: uma amostra genial do absurdo na literatura russa
“O nariz” do escritor ucraniano/russo Nikolai Gógol, conto escrito entre os anos de 1835 e 1836. Foi meu segundo contato com as obras do autor. Eu já tinha lido “O retrato” em meados de 2013.
Na obra, um barbeiro de nome Ivan Iákovlevitch, em certa manhã, durante o café ao fatiar um pão, encontra um nariz, deixando-o perplexo, sem saber o que fazer. Em paralelo, em outro local da cidade, o major Kovaliov acorda e percebe que está sem o seu nariz. Desesperado, sai em uma busca pelo mesmo.
Embora fosse um escritor típico (e pioneiro na Rússia) do realismo, Gógol se permitia uma certa ousadia, inovando ao trazer o absurdo por meio da sátira à literatura russa. Ele tratava da realidade cotidiana, criticando os vícios e a hipocrisia nas interações humanas. O elemento fantástico funciona como ferramenta, instrumento que possibilite o desenvolvimento da temática.
A história absurda diverte. Entretanto, o verdadeiro objetivo de Gógol é criticar a excessiva burocracia do Estado. Kovaliov busca, em determinado momento, a ajuda da Polícia e da imprensa e, mesmo diante do desespero do protagonista, as autoridades pouco fazem para ajudá-lo. Aliás, Kovaliov se depara com o descrédito, o desdém.
Talvez algum leitor fique insatisfeito com o desfecho da obra. Porém, um dos objetivos da sátira é suscitar debates, promover questionamentos. Provavelmente, Gógol leu e buscou inspiração no escritor mais famoso da época, o pioneiro da literatura russa contemporânea Alexandre Pushkin. Penso nisso principalmente tendo a vista a obra “A dama de espadas” que, mesmo tendo uma temática totalmente diferente, possui alguns pontos em comum com “O nariz”. Temos um fenômeno fantástico, um elemento de crítica (a ganância humana nesse caso) e o próprio final.
Interessante lembrar que o próprio Pushkin era muito admirado por Gógol. Eles se conheceram e surgiu entre ambos uma sincera amizade e uma admiração mútua, evidenciada por conselhos. Gógol pretendia, por exemplo, desenvolver o enredo de “O nariz” num cenário onírico, numa primeira versão do texto. Foi Pushkin que aconselhou Gógol a desenvolver a história num contexto do cotidiano, sem abrir mão, é claro, do absurdo. Vale citar ainda, sobre a amizade entre os escritores, que a publicação de “O nariz”’ foi rejeitada inicialmente por um editor. Coube à revista Sovreménnik (“O Contemporâneo”, em português), comandada pelo próprio Pushkin, a primeira publicação de “O nariz”.
Na elegante edição que tenho em mãos, publicada pela lisboeta Assírio & Alvim, há um bem-humorado prefácio escrito por outro gigante russo, Vladimir Nabokov, autor de “Lolita”. Como curiosidade, Nabokov nos conta como a imagem do nariz é presente em outras obras de Gógol e que a presente obra, “um verdadeiro hino a este órgão”, em suas palavras, é apenas o ápice dessa fixação. Nabokov nos conta ainda que Gógol, em roda de amigos, com semblante sério e um humor bem inusitado, dizia que uma junta médica tinha diagnosticado que seu estômago estava virado ao contrário e, por culpa disso, o papel de seu nariz era desempenhado pelo outro órgão e vice-versa. Seria o próprio nariz de Gógol (um pouco avantajado, convenhamos) que influenciou a fantasia ou o contrário, questiona Nabokov. Nunca saberemos.
Enfim, “O nariz” representa uma boa amostra do início do realismo russo e sua temática inusitada mostra o quão precoce o fantástico surgiu na incrível literatura russa contemporânea, alinhada a uma postura crítica do cotidiano. É inteligente, é divertido.
NOTA: 4/5 (ótimo).
FICHA: GÓGOL, Nikolai: prefácior de Vladímir Nabókov; tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra. O nariz. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, 2ª edição, (Coleção Gato Maltês # 39), 76 páginas. Título original: Hoc.
P.S.: Caso tenha gostado do que escrevi, visite https://mftermineideler.wordpress.com/