"Roque Santeiro ou O berço do herói" de Dias Gomes: a peça de teatro adaptada para telenovela de sucesso, censurada pela Ditadura Militar, que teve como atriz protagonista uma entusiasta do mesmo regime
Peça “O berço do herói” de Dias Gomes, originalmente publicada em 1965, que posteriormente passou a ser conhecida pelo nome de “Roque Santeiro”, devido ao sucesso de sua adaptação como telenovela pela Rede Globo, entre os anos de 1985 e 1986.
TRAMA
Na peça, durante a campanha militar da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial, Cabo Roque, em um surto de nacionalismo repentino, assim interpretado pelos companheiros, em meio a uma batalha na Itália, sai em disparada em direção às tropas inimigas, desaparecendo no meio do conflito e dado como morto.
A notícia de sua morte heroica chega até a pequena cidade onde ele nasceu. Influenciada pelo ocorrido, monumentos passam a ser rebatizados como “Cabo Roque”. A própria cidade é rebatizada com o nome do falecido herói soldado. O ocorrido passa a influenciar, inclusive, o turismo e consequentemente a economia local.
A confusão se instaura quando, cerca de 20 anos depois, Cabo Roque, que não morreu, resolve voltar à cidade e confessa que, na realidade, ele fugiu com medo da batalha, vivendo todo esse tempo na Europa, onde foi acolhido por uma italiana. Quem não gosta nada disso é o prefeito da cidade, Chico Malta, e sua amante, Porcina, que se tornou “viúva” do Cabo Roque sem ter tido um relacionamento, de fato, com ele, apenas por ganância.
CENSURA E TELENOVELA
A peça sofreu com processos de censuras já a partir de 1963. Em vários momentos, montagens foram proibidas de serem encenadas no dia de estreia. O autor, Dias Gomes, precisou, em diversas oportunidades, prestar esclarecimentos aos militares, respondendo a questionamentos burocráticos kafkianos de toda natureza. Em um anexo da edição que tenho em mãos, ele conta boa parte desse processo. Provavelmente, os militares se sentiram incomodados com a retratação do protagonista, um combatente da FEB, como um covarde, em um momento em que os militares assumiam o comando do país de forma criminosa e antidemocrática.
Em meados de 1975, a emissora de TV Rede Globo iniciou a gravação de uma telenovela, adaptando a peça de Dias Gomes. Dirigida por Daniel Filho, teria no elenco Francisco Cuoco no papel de Roque Santeiro (o Cabo Roque), Lima Duarte como Sinhozinho Malta (o Chico Malta) e Betty Faria como viúva Porcina. Entretanto, a censura da Ditadura Militar impediu a exibição da telenovela. A proibição veio no dia de sua estreia, através de um ofício emitido pelo DOPS (1), quando já tinham sido gravados 30 capítulos. Devido a isso, a Rede Globo precisou exibir uma reprise da telenovela “Selva de Pedra” (de Janete Clair), para dar tempo de escrever e filmar outra telenovela, “Pecado Capital” (também de Janete Clair), exibida entre 1975 e 1976.
Dez anos depois, com a Ditadura Militar caminhando para um final melancólico, entregando um país falido e tendo crimes de toda a natureza (inclusive contra a humanidade) nas costas, a Rede Globo tentou lançar uma nova adaptação da peça. Como diretor, saiu Daniel Filho e entraram quatro diretores (Paulo Ubiratan, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Jayme Monjardim). No trio de atores principais, no papel de Roque Santeiro, entrou José Wilker. No papel de Sinhozinho Malta, Lima Duarte continuou no papel. Por sua vez, a viúva Porcina passou a ser interpretada por Regina Duarte.
A segunda versão da telenovela foi um sucesso de audiência (até hoje, a mais assistida da Rede Globo), sendo reprisada em outras oportunidades e, frequentemente, é considerada uma das melhores já feitas. Foi exibida também em outros países.
Por causa desse sucesso, Dias Gomes, em edições posteriores da peça (como a que eu li), incluiu o título de “Roque Santeiro” junto com o título original, “O berço do herói”. Ele também incorporou textos da telenovela na peça, em momentos específicos. Um bom exemplo disso é o bordão “tô certo ou tô errado?”, criado por Lima Duarte para o Sinhozinho Malta.
Não posso deixar de citar, na presente resenha, o fato curioso e repulsivo de que a atriz Regina Duarte, mesmo ciente de todas essas ações de censura (e até intimidação) com colegas de trabalho, sempre defendeu a Ditadura. Filha de um militar, ela recebe mensalmente uma pensão por tal condição. Nas eleições presidenciais de 2002, fez vídeo de propaganda política contra o então candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) Luís Inácio Lula da Silva, que viria a ser eleito. Regina Duarte participou ativamente de manifestações políticas após as Jornadas de Junho de 2013, principalmente nos protestos que culminaram no golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff em 2016. Em anos recentes, apoiou abertamente o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro e, num governo caótico e hostil nas questões culturais, recebeu dele a função de Secretária de Cultura. Na função, teve desempenho pífio e o auge disso foi uma vergonhosa/constrangedora entrevista concedida por Regina Duarte à emissora de televisão CNN Brasil, na qual ela fez pouco caso da Ditadura Militar e os homicídios cometidos, chegando a cantar um dos jingles ufanistas do regime.
UMA REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE BRASILEIRA E CONCLUSÃO
Como o título original da peça sugere, o tema que Dias Gomes trabalha é o da formação do herói. Para o autor, o herói é um produto fabricado para atender interesses. Na trama, a construção da figura do herói serve para favorecer os interesses gananciosos de uma elite.
O herói construído favorece os privilégios de vários tipos de componentes da elite: a classe política, a religião predominante e o meio militar. A população fica no meio disso, aceitando a narrativa criada como realidade, sendo refém das consequências da farsa.
Quando toda a realidade é fundamentada em mentiras, a verdade, representada no retorno do Cabo Roque, representa uma séria ameaça. Trata-se de uma ameaça à rede de privilégios criada em torno da mentira, bem como à frágil aliança entre setores criada em torno da mesma.
O texto de Dias Gomes, de certa forma, tenta representar a realidade típica de grande parte das cidades do Brasil, onde temos um pequeno grupo de agentes que determinam os rumos de cada município. Temos a figura do prefeito, geralmente uma pessoa rica e com posses, a figura do padre/pastor que mantem o povo unido, a classe média/rica, que se beneficia do status quo de privilégios obtidos com o restante da população, desinformada, se mantém apática, alheia ao jogo de interesses que permeia as relações da elite, que ditarão os rumos da cidade.
Olhar para a própria realidade injusta é um tema espinhoso. Por isso, provavelmente, Dias Gomes utiliza o humor como alicerce da narrativa, característica que se manteve na telenovela. O fato interessante é que a comédia, nesse sentido, facilita a assimilação da mensagem, principalmente por parte das camadas menos privilegiadas da sociedade. Estaria aí a razão do sucesso de “Roque Santeiro”, visto que o povo se viu representado? Provavelmente sim.
Com texto inteligente e provocativo, mostrando a hipocrisia e o jogo de interesses que rege a realidade brasileira, com uma boa dose de humor e sarcasmo, “Roque Santeiro” ou “O berço do herói” é uma peça necessária, um convite à reflexão e uma experiência literária ótima.
(1) Departamento de Ordem Política e Social foi um órgão do Governo Federal criado em 1924, utilizado durante o regime autoritário Estado Novo e a Ditadura Militar, para a prática de censuras, com a desculpa estapafúrdia de garantir a disciplina e ordem no país.
NOTA: 4/5 (ótimo).
FICHA: GOMES, Dias. Roque Santeiro ou O berço do herói. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, 3ª edição, (Coleção Prestígio), 160 páginas.
P.S.: Livro lido em fevereiro. Resenha escrita em maio de 2020.
P.S.: Caso tenha gostado do que escrevi, visite https://mftermineideler.wordpress.com/