As cartas de Euclides da Cunha e a miragem estética dos infortúnios humanos
As cartas de Euclides da Cunha e a miragem estética dos infortúnios humanos
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
É preciso estudarmos os autores brasileiros. Retomo Euclides da Cunha. Essa é minha penúltima intervenção no tema. Euclides era um cético. Criticava combinações políticas que ninguém entendia. Duvidava da ilusão permanente em um progresso falaz e duvidoso. Em suas andanças pela Amazônia e pelos sertões da Bahia constatou a ferocidade do homem para com o ambiente hostil. De algum modo, um era causa do outro. Intuiu que marchávamos para o futuro, sacrificando-o, como se andássemos nas vésperas do dilúvio ou do apocalipse. Já denunciava queimadas e degradação ambiental. As queimadas, escreveu em Contrastes e Confrontos, resultavam em uma abertura contínua de sucessivas áreas de insolação, ampliadas em São Paulo, Minas, “em todos os trechos, mais apropriados à vida” na área tropical que malsinava.
Distantes da realidade, os brasileiros idealizávamos em tom de maravilha uma realidade que se resumia numa dança macabra. Euclides ironizava a progresso. O passado era um despojo, e não uma referência, mote que era comum em Joaquim Nabuco, seu confrade na Academia Brasileira de Letras. Tomando uma reflexão de Euclides, em outro tema e personalidade, insisto que Euclides não escrevia, lecionava; não doutrinava, demonstrava; não generalizava: analisava, dissecava, induzia friamente, ensinava. Refratário a um pensamento convencional, Euclides justificava inclusive o roubo, que reputava como uma reação à opulência dos ricos. Para o escritor, o roubo por vezes era “um direito natural de legítima defesa contra a morte e um dever imperioso para com a vida”. Uma criminologia pouco ortodoxa, mas muito realista.
Euclides revelava uma visão empolgante e contraditória do sofrimento humano, no prisma de uma miragem estética de nossos infortúnios. Um pouco dessa sensibilidade é aferida na leitura das cartas que redigiu, e que chegam até nós. As cartas de Euclides foram publicadas na preciosa edição de Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti. Walnice, importante pesquisadora, lecionou na USP, colaborou com Antonio Cândido e é autora de extensa obra, com muito foco, entre outros, em Euclides da Cunha. Galotti exerceu a medicina e foi um dos criadores das jornadas que resultaram nas semanas euclidianas. As cartas de Euclides, reunidas e publicadas, dão pistas, testemunhos e valiosas informações sobre esse importante escritor. Euclides denunciava que desconhecíamos o Brasil, e que éramos capazes de acreditar que aqui havia leões.
Nas cartas de Euclides revela-se alma nômade. Euclides denominava as várias casas nas quais morou como sua “tenda árabe”. Para um amigo advogado, Reinaldo Porchat, escreveu que não nasceu para a vida sedentária. Tinha alguma coisa de árabe. Idealizava uma vida mais movimentada, “aí por esses sertões desertos e vastos de nossa terra”. Para outro amigo, João Luís Alves, que foi mais tarde Ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal, registrou que vivia uma “santa existência de árabe”. A esse mesmo amigo, escreveu que esperava acolhê-lo em sua casa, que insistia ser uma tenda de árabe.
Euclides, em carta ao pai, criticou Benjamin Constant, a quem tinha como seu “antigo ídolo”. A carta é de 14 de junho de 1890, e já revela uma desilusão com a república (e sem dúvidas com o positivismo também), situação que enfatizou, a propósito da morte de Floriano Peixoto, em carta de 8 de julho de 1895. Sabe-se, por conta de carta datada dirigida a Lúcio de Mendonça, poeta, que Euclides estivera com Floriano, lembrança que retomava com tristeza e indiferença. Em um de seus livros (Contrastes e Confrontos) Euclides hostilizou Floriano, o Marechal de Ferro, que reputou como aquele que traduzia de modo admirável a nossa fraqueza ao invés de nossa robusteza. Floriano teria subido sem se elevar. Para Euclides, Floriano era uma esfinge: impassível, indiferente, esquivo, dissimulado, um homem que fitava a todos, mas que não olhava ninguém.
Percebe-se que Euclides irritava-se com o progresso que parecia tomar conta do Rio de Janeiro. Em carta a um amigo, datada de 12 de fevereiro de 1908, relatava que havia “cachaços gordos de alguns felizes malandros” que andavam “fonfonando desabaladamente, de automóvel” ameaçando atropelar os transeuntes. Assustava-se com os primeiros carros que buzinavam pela cidade.
Tratou de miríade de assuntos. Chegou a esboçar uma teoria constitucional, em carta a Augustín de Veda, constitucionalista uruguaio. O escritor brasileiro entendia que “uma Constituição é quase sempre uma resultante histórica de componentes acumulados no evoluir das ideias e dos costumes”. No livro Contrastes e Confrontos criticava o fato de que havíamos copiado a Constituição dos Estados Unidos, “numa agitação reflexa, com o cérebro inerte”.
Em uma das cartas, datada de 1985, para o amigo João Luís Alves, registrava as influências intelectuais que lhe marcavam: Comte, Spencer, Huxley. Euclides era um inconformado. Reclamava o tempo todo. Confessava para o amigo Porchat que “era um engenheiro medíocre”. A outro correspondente, afirmou que levava “existência aspérrima de um condenado a trabalhos forçados, à margem de um rio odiento, diante do espantalho de uma ponte desmantelada”.
Mourejava uma vida “trabalhosa, de exilado”. Em carta para Egas do Aragão, médico e escritor baiano, Euclides afirmava que levava a mais inútil das vidas. Estava em perene conflito com uma engenharia obscura, cujas exigências o afastavam de outras ocupações mais atraentes, às quais se dedicava somente nas horas de folga. Para Porchat escrevia que vivia “(...) vida fatigante de trabalhador – meio engenheiro, meio operário”. Em 1904 confessava a um amigo que contava (dolorosamente) “doze anos de carreira fatigante, abnegada, honestíssima, elogiada, traçada retilineamente”; vivera como um asceta, “com a máxima parcimônia, sem uma hora de festa dispendiosa”. Estava, no entanto, “inteiramente desaparelhado”. Em 1905, para Porchat, afirmava que vivia “totalmente absorvido pelos mil nadas da profissão”. Para o grande diplomata Oliveira Lima confessava, em carta de1908, que vivia com tristeza e inveja.
Euclides carregou ao longo da vida uma tuberculose adquirida na infância. Reclamou da saúde a vida toda. Era um hipocondríaco. Em 4 de agosto de 1892 afirmava que passara oito dias a fio combalido por uma nevralgia dolorosíssima que o inutilizara totalmente. Para o mesmo destinatário (Porchat) reconheceu em 1893 que também enfrentava uma “dose sofrível de doenças imaginárias”. Para o pai, em dezembro de 1893, afirmava estar fraco, que pressentia o fim, que sua esposa estava prestes a enviuvar, que enfrentava uma tosse “deliberadamente insistente e rebelde” que progredia espantosamente. Afirmava que os conhecidos o achavam “abatido e alquebrado”. Para Porchat escrevia que cultivava longa estada no leito da dor, com um reumatismo tenaz.
Em 19 de novembro de 1895 escrevia a um amigo que estava “sofrendo as consequências de impaludismo adquirido num banho forçado no insidioso Paraíba”. Contava que estava adoentado e que se a doença persistisse tomaria outra vez “o cajado de peregrino” e procuraria outras terras. Euclides chega a ser bizarro. Em carta a um amigo (João Luís) contava que cometera a imprudência de ler após o jantar, pelo que passou por uma vertigem que “felizmente não teve maior consequência”.
Da região de Canudos, escrevia em 20 de agosto de 1897, que passava por uma constipação e por uma hemoptise (sangramento originário dos pulmões). Em 5 de setembro de 1904 informava a Plínio Barreto (advogado e jornalista) que enfrentava uma nevralgia por dia. Para o mesmo Plínio escreveu em 22 de outubro do mesmo ano que era um forte candidato “ao impaludismo, ao beribéri, à filária, e, talvez, à morte”. Ao pai, reclamava em 30 de dezembro de 1904, que tinha um estômago incorrigível e um enjoo intolerável. Para Domício da Gama, em 14 de julho de 1906, afirmava que há dois dias não tinha febre. Em 1908 se queixava de um indomável impaludismo amazônico. Nesse mesmo ano, queixava-se ao poeta Vicente de Carvalho que enfrentava o beribéri acreano. Em 11 de dezembro de 1908 lamentava-se de um forte resfriado. Em 3 de julho de 1909 voltava o sangue jorrado dos pulmões.
Em suas cartas Euclides nos revela uma permanente insegurança vivida nos vários empregos que exerceu. Suas elucidam um pouco desse escritor por vezes enigmático, esquisito, sofrido, talentoso e inconstante. Teve dificuldades em encontrar um posto como professor. Em 10 de janeiro de 1895 pediu ao sogro (General Solon Ribeiro) que o ajudasse a conseguir uma comissão como engenheiro. Estudava para concursos, ocupando-se de disciplinas tão distintas como mineralogia, geologia, astronomia e lógica. Quase foi nomeado para fiscalizar a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, desistindo a instâncias de seu pai.
Em carta dirigida a Oliveira Lima, datada de 15 de fevereiro de 1907, queixava-se que não havia conseguido um emprego fixo e que gastara imprudentemente uma boa parte de sua vida. Prestava serviços para o Itamaraty, era ligado ao Barão do Rio Branco, mas não fora chamada para a carreira diplomática; em carta de 4 de junho de 1907 afirmava que esperava uma reforma na Secretaria do Exterior, que nunca ocorreu, como esperava. Em 25 de maio de 1908, para Oliveira Lima, Euclides lamentava que seus filhos pagariam com juros a sua imprevidência. Em 22 de dezembro daquele ano Euclides escreveu para Oliveira Lima narrando que havia feito inscrição para o concurso de lógica no Ginásio Nacional. Ficou em segundo lugar, perdendo para Farias Brito. No entanto, foi nomeado. Lecionou muito pouco, logo em seguida perdeu a vida no tiroteio com o amante da mulher.
As várias cartas também indicam as relações de Euclides com os confrades da Academia. Em 21 de junho de 1903 escrevia a Machado de Assis (a quem chamava de “meu mestre”) solicitando a inclusão de seu nome como candidato a vaga aberta. Pediu votos e apoio de Artur Azevedo, Afonso Celso, Oliveira Lima, Rio Branco, Salvador Mendonça. Foi o escolhido. O patrono da cadeira era Castro Alves, em homenagem a quem seu pai havia escrito alguns versos. Em seu discurso de recepção na Academia Euclides se confessa um escritor por acidente, habituada a andar terra-a-terra, “abreviando o espírito à contemplação dos fatos de ordem física adstritos às mais simples e gerais”.
Euclides correspondeu-se também com os críticos José Veríssimo e Araripe Jr., com o eterno abolicionista Joaquim Nabuco, com Artur Azevedo, Graça Aranha. Correspondeu-se com os nomes mais distintos do Itamaraty. Trocou cartas com Júlio de Mesquita, editor da Província (depois Estado) de São Paulo, que o tinha em grande conta, e que o convidou para fazer reportagens na guerra de canudos, embora tenha se recusado a publicar o livro, cinco anos mais tarde. Há várias cartas para seu pai e filhos, bem como para amigos que fez nas várias cidades do interior de São Paulo nas quais viveu, e onde trabalhou como engenheiro. A leitura dessas cartas revela uma alma dividida, uma personalidade ressentida e uma escrita envolvente.
Em constante movimento Euclides buscou “as relações mais altas e formadoras das impressões artísticas, ou das sínteses estéticas”. Na próxima intervenção comentarei sua morte e o tribunal do júri que tratou de seu infortúnio. A exemplo de José Guilherme Merquior, ainda que por outra razão, bem entendido, Euclides faleceu bem antes de alcançar o ápice de uma produção que justifica que o tenhamos como um dos grandes pensadores de nossos problemas. É com Euclides que compreendo que o escritor dos Sertões infelizmente não viveu a mais bela imperfeição da vida: o defeito de viver demais.