Machado de Assis e o conto “Entre Santos”

Machado de Assis e o conto “Entre Santos”

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“Entre Santos” conto que Machado de Assis publicou em “Várias Histórias” é uma narrativa que ao mesmo tempo trata de questões teológicas, eclesiásticas, metafísicas, sociológicas e psicanalíticas. É também um exemplo de texto com forte metalinguagem. Relatos se cruzam. As histórias se remetem ao núcleo central do enredo. É um conto psicanalítico porque a base da narrativa pode ser um sonho. O leitor pode considerar a narrativa como um relato onírico a espera de uma interpretação plausível. É um metafísico porque explora a transcendência, no sentido de que insinua uma vida concreta entre personagens assumidamente integrantes da tradição religiosa. Os santos conversam sobre assuntos humanos.

É um conto eclesiástico porque problematiza o papel das orações e dos pedidos dos fiéis. Os santos avaliam as esperanças e expectativas humanas. É um teológico porque investiga o papel e a performance de santos, que em determinado momento afirmam que perderam a crença em nós humanos. Machado inverte a tábua de valores. Não são os homens que devem acreditar nos santos. São os santos que devem acreditar nos homens. Além do que, o narrador fantasia em torno de como os santos recebem pedidos e orações. Insisto nos aspectos psicanalíticos do conto, no sentido de que seja um sonho ou, no limite, um material onírico a ser trabalhado. O narrador fecha a história, pela manhã, aguardando a entrada do sol, o “inimigo dos maus sonhos”. Parece-me que uma interpretação literal aponta para a premissa que aqui proponho: “Entre Santos” é o relato de um sonho.

O conto vem em primeira pessoa. O narrador é um velho padre. Conta que viveu uma aventura extraordinária. Era capelão da igreja de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro. À noite, percebe, de onde dormia, uma luz que passava pela fresta da porta do templo. Percebeu uma luz fixa, pelo que deduziu que não se tratava de um ladrão. Buscou as chaves na sacristia, o sacristão fora dormir em Niterói. O padre correu (com muito medo) para o interior do templo. A luz, escreveu, era de “uma cor de leite que não tinha a luz das velas”. Ouviu vozes. Achou que eram mortos que falavam porque à época os corpos eram enterrados nas igrejas.

Em êxtase observou que era uma conversa entre os santos. De um lado, São José e São Miguel, de outro, São João Batista e São Francisco de Salles. As imagens desceram dos altares. Eram santos em tamanho natural. O narrador se definiu como beirando o abismo da loucura, do qual não caiu porque foi salvo pela misericórdia divina. A conversa entre os santos era animada. Inventariavam e comentavam as orações e os pedidos do dia. O narrador conclui que os santos eram “terríveis psicólogos”, na medida em que penetravam a alma e a vida dos fiéis. Na linguagem superior de Machado, desfibravam os sentimentos do mesmo modo como os anatomistas desfibram os cadáveres.

Os santos relatavam casos de fé sincera, de indiferença do crente, de dissimulações, de versatilidade. Nem todos que frequentavam a igreja eram puros. Os santos ilustram o fato com a parábola dos trabalhadores da vinha, na qual o Evangelista encerra lembrando que “os últimos serão os primeiros.

Na parábola dos trabalhadores da vinha o enredo parece simples. Compara-se o Reino dos Céus a um proprietário que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou o preço e enviou-os para o trabalho. Ao longo do dia reuniu desocupados, até a hora undécima, e os enviou também. Pediu, no fim do dia, que o administrador chamasse a todos os trabalhadores, e que os pagasse pelo trabalho. A todos eles, tanto os que trabalharam o dia todo, quanto os que trabalharam por pouquíssimo tempo, os remunerou da mesma forma. Os que trabalharam o dia todo se insurgiram. O proprietário argumentou que pagava exatamente como havia combinado. Pediu que tomassem o que fora ajustado e que se fossem então. Lembrou que era lícito que fizesse o que quisesse com o que fosse seu. O excerto se encerra de modo proverbial: “(...) os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos [porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos]”. É justamente essa a passagem que os santos utilizam para ilustrar a inconstância dos fiéis.

São José contava o caso de uma adúltera que clamava por um coração “limpo da lepra da luxúria”. Para o padre narrador os santos viam tudo que se passava no interior das pessoas, como se fôssemos de vidro. Enxergavam inclusive ódios secretos que alimentamos. São Francisco contou a história de um avarento que temia a perda da esposa, doente, dado uma erisipela na perna esquerda. A família, conta o narrador, era composta do avarento, da esposa convalescente e de uma escrava. O demônio da avareza dificultava os pedidos do marido que sofria. Ao prometer sacrifícios contava rezas em grandes cifras, como se rezas fossem moedas.

“Entre santos” é uma peça cheia de ironia que, acredito, insiste que entre mortais e imortais o traço definidor é o ponto de vista do narrador. Tudo, naturalmente, em forma de sonho, quando, na impressão do psicanalista de Viena, realizamos nossos desejos mais profundos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 01/08/2020
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