Machado de Assis e o conto “A Igreja do Diabo”
Machado de Assis e o conto “A Igreja do Diabo”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O Diabo sustentava que a venalidade era o exercício de um direito superior. Afinal, argumentava o anjo decaído, se ao homem é facultado vender bens materiais por que não poderia vender seu voto, sua palavra, sua fé e sua consciência? A defesa da venalidade, enquanto um direito, era um dos dogmas que orientaria uma nova igreja, criada pelo próprio Lúcifer, na imaginação de Machado de Assis. Trata-se do conto “A Igreja do Diabo”.
As contradições da alma humana, parece-me, é o ponto central desse belíssimo conto. Publicado por volta de 1884 o conto, também me parece, provocou o pensamento católico então dominante. Machado revela-se, no mínimo, para os pressupostos teológicos da época, um herege ou um iconoclasta. Faz Deus e o Diabo dialogarem, grafando esse último com caixa alta também. Heresia.Diz que a narrativa estava contida em um “velho manuscrito beneditino”, uma técnica usada por Cervantes, e muito mais recentemente por Umberto Eco e por Jorge Luís Borges. Tem-se uma brincadeira com o leitor. É o jogo literário que se exprime em forma de negativa de autoria.
O narrador nos dá conta de que o Diabo queria fundar uma Igreja. Queria se organizar. Cansado de uma prática randômica e nada organizada, pretendia fixar regras, cânones e rituais. Era chegado o momento de combater as outras religiões, que pretendia destruir. Teria sua própria missa. O narrador revela que o Diabo distribuiria fartamente pão e vinho. Pretendia uma Igreja única, sem concorrentes, não haveria mais Maomés e Luteros. Sem reformas e contra-reformas e avivamentos.
Deu início ao projeto dirigindo-se ao Céu, onde conversaria com Deus. Queria explicar seus motivos, suas ideias e o alcance da empreitada. Deus cuidava de um ancião recentemente falecido. O Diabo explica que pretende criar uma Igreja que se pareceria com uma hospedaria barata. Receberia muita gente. Deus questiona uma atitude tão serôdia; afinal, por que só então? Com escárnio e sorriso o Diabo presumia que ameaçava seu Opositor. Explicava-se. Comparava as virtudes às rainhas e seus mantos de veludo, nos quais havia franjas de algodão no remate. Sua intenção era puxá-las pelas franjas. O Senhor o acoimou de retórico, acusou-o de vulgar. Lembrou que tudo que o Diabo intencionava reverberar todos os moralistas já haviam tratado. O Diabo lembrou que era “o espírito que nega”. Deixou o Céu, e com suas asas caiu na Terra.
Começou sua grande obra. Machado de Assis denomina a expansão das ideias do Diabo como um conjunto de boas novas aos homens. Faz uma maliciosa comparação com a traduzibilidade dos Evangelhos. Segundo o narrador, o Diabo deu início ao trabalho, e não perdeu um minuto. Prometia delícias na Terra, todas as glórias e toda a sorte de deleites. Uma nova igreja mais do que todas cheia de prazeres mundanos. Excitava aqueles que para quem pregava. Congregava as multidões.
Anunciou uma doutrina encantadora. Pretendia reabilitar a soberba, a luxúria, a preguiça, a avareza, a ira, a gula e a fraude. Justifica esse panorama, com eloquência, lembrando que a ira poderia ser responsabilizada pelas narrativas de Homero. A Ilíada tem como ponto de partida a ira de Aquiles. Justificou a gula, com base em François Rabelais. O escritor francês escrevera várias páginas fazendo apologias ao apetite nada comensurado de Pantagruel. A avareza, seguia, era mãe da economia. A fraude consistia no braço esquerdo do homem; o braço direito era a própria força.
A nova religião cresceu exponencialmente. Com base na eloquência de seu nome maior, o Diabo, a nova igreja alcançou todas as religiões, todas as raças e todas as línguas. Tornou-se uma crença universal. Em pouco tempo o Diabo realizou o projeto milenar da Igreja paleocristã, que de Roma alcançou o mundo. Enaltecia a venalidade e a hipocrisia. O Diabo lançou uma cruzada contra todas as formas de solidariedade. Argumentou (com sucesso) que a o amor ao próximo era um afeto de parasitas.
Porém, para seu desespero, fatos estranhos começaram a ocorrer. Glutões comiam frugalmente às escondidas. Avaros davam esmolas pela noite. Ocorreu a inversão das inversões. O que era pecado, que o Diabo havia transformado em boa ação, e o que era proibido, que o Diabo havia retificado para o permitido, novamente se transformaram em boas ações ou em vedações. Os maus faziam o bem às escondidas. Os mentirosos falavam à verdade, ainda que à boca pequena. Os ladrões remuneravam aqueles que desfalcavam.
“Trêmulo de raiva” o Diabo voltou para o Céu. Queixou-se. Deus apenas lembrou que as capas de veludo que tinham franjas de algodão tornaram-se capas de algodão com franjas de seda. A contradição permanente do ser humano explicava, ao mesmo tempo, a ascensão e a queda da Igreja do Diabo. Em forma de uma parábola desafiadora Machado de Assis questionou os fundamentos de nossa tradição. Nesse sentido, ao contrário do que muitos insistem, Machado de Assis revela-se, ainda mais uma vez, um escritor militante, cético, irreverente e angelicamente demoníaco, se possível essa contradição.