Machado de Assis e o conto “A Missa do Galo”
Machado de Assis e o conto “A Missa do Galo”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Missa do Galo é um conto de enredo surpreendente e que explora temas como a relação entre memórias e narrativa, linguagem corporal e sedução, a sexualidade feminina, a inocência do jovem e a inconsciente traição da mulher traída e humilhada. Quanto à memória, também de algum modo expressa em fotografias, tem-se um amarelo que, no dizer do crítico Álvaro Lins, ou desaparece, ou escurece, ou se torna vermelho. O tema é freudiano também: a memória é seletiva, criativa, defensiva.
A narrativa da Missa do Galo é um extrato da memória de Nogueira, um rapaz que vivia (era estudante) na casa do escrivão Chiquinho Menezes. Na casa também viviam Conceição (a mulher traída passiva e sedutora) e sua mãe, Dona Inácia, que de algum modo acobertava o modo como Chiquinho e Conceição viviam. Chiquinho tinha uma amante, com quem passava uma noite todas as semanas, que todos sabiam. O narrador nos conta que Conceição se insurgiu levemente quando soube do caso extraconjugal do marido, mas que, com o tempo, acostumou-se com a situação. Na casa havia também duas escravas.
Nas noites que passava fora Chiquinho justificava-se, alegando que ia a teatro. Era a palavra-chave e o eufemismo indicativo da traição. Há uma cena no conto, na qual Chiquinho despede-se, invocando que iria ao teatro, no momento no qual Nogueira pede para ir junto. A sogra rapidamente intervém, dissuadindo o rapaz da proposta. Tudo estava subentendido, a situação estava resolvida para todos, e a poligamia do marido é tida como natural. É nesse passo que o leitor pode esboçar uma diferença entre poligamias consentidas explicita e implicitamente.
Nas poligamias explícitas (talvez em alguns modelos da cultura muçulmana) as mulheres todas vivem na mesma casa com o marido. É o caso também dos haréns, a exemplo da referência bíblica ao Rei Salomão, que se supõe contava com 300 esposas e 600 concubinas. Há um livro de Moacyr Scliar, que explora com muito humor a relação do Rei Salomão com uma de suas companheiras. Já nas poligamias implícitas, cuja forma arcaica estava na figura da “hetaira” da antiguidade grega, as mulheres vivem em casas distintas. É o caso da poligamia de Chiquinho. Sua amante era uma mulher separada do marido. Chiquinho fora casado (em primeiras núpcias) com uma prima do Nogueira, o seu hóspede. Nogueira é o narrador.
Conceição é personagem que está no centro do conto. Tinha 30 anos, casara-se com Chiquinho aos 27. Era uma mulher de gestos demorados e de atitudes tranquilas. Segundo o narrador, não era feia, nem simpática, mas de algum modo ficou subitamente bonita. Tinha os braços claros, com veias tão azuis. Não sabia odiar, e talvez não sabia amar. A narrativa passa-se na noite da missa do galo, celebrada na véspera de Natal, exatamente à meia-noite de 24 de dezembro. A expressão decorre da tradição cristã, que aponta que no nascimento de Jesus um galo cantara estrondosamente, anunciando a chegada do Salvador. Há uma tradição espanhola, também explicativa da expressão, segundo a qual, um pouco antes da meia-noite de 24 de dezembro os camponeses matavam um galo, como lembrança do Apóstolo Pedro, que negara Cristo por três vezes, “antes do cantar do galo”. As aves eram levadas para a Igreja, e distribuídas aos pobres.
Nogueira combina de ir à missa com um amigo. Se encontrariam um pouco antes. Na sala, Nogueira passava o tempo, lendo “Os três mosqueteiros”, o romance de capa e espada de Alexandre Dumas que descreve as aventuras de Dartagnan, personagem central, e dos outros três: Porthos, Aramis e Athos. Conceição vai até a sala. É evidente que tente seduzir o rapaz. A linguagem corporal, descrita pelo narrador, nos indica uma mulher que explodia em desejos. O marido estava com a amante, era a noite do teatro. Conceição passava a língua nos beiços, para umedecê-los. Arrastava uma chinelinha de alcova. Quer se entregar ao rapaz. Pede, a todo instante, que fale baixo; a mãe pode acordar. Aproxima-se de Nogueira. Falavam sobre romances, cita o Joaquim Manoel de Macedo. Conceição afirma que pensava muito, e que pensava em coisas esquisitas.
O amigo bate na porta. Devem ir para a missa. Nogueira se diz em um sonho magnético, que lhe tirava a língua e os sentidos. Ele queria, mas também não queria acabar a conversa com Conceição. Despediu-se. Fugiu a oportunidade. Soube depois que Chiquinho faleceu e que Conceição casou-se com o escrevente juramentado que trabalhava com o marido. Poderia o conto se encerrar de outra forma?
Perplexos, os leitores não sabemos se os fatos efetivamente ocorreram como anunciados pelo narrador, isto é, se não era um desejo de Nogueira em forma de devaneio. De igual modo, nos comovemos com a tentativa de sedução de Conceição, isto é, se verossímil a narrativa do rapaz. Principalmente, nos impressionamos com a densidade discursiva de Machado de Assis, que nesse conto, publicado em “Páginas Recolhidas”, mostra-se (mais uma vez) como um profundo conhecedor dos segredos da alma humana, que indica, mas não explica, que comenta, mas não elucida, como se os mistérios do inconsciente fossem peças de quebra-cabeça de um romance policial. E nesse caso não há mordomo a ser culpado.