Machado de Assis e o conto “O Diplomático”
Machado de Assis e o conto “O Diplomático”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Os limites entre a ação prática do realizador e a imaginação do idealizador temerário é a perspectiva que anima “O Diplomático”, que Machado de Assis publicou em “Várias Histórias”. Machado celebra a audácia, que ajuda a sorte de algum modo favorece. Retoma, assim, concepção de Maquiavel, que atribui o sucesso à conjunção entre virtude e fortuna. Na transferência do argumento para o conto, a virtude se transforma em audácia. O fracasso é a falta de coragem, de audácia, de virtudes.
Queiróz é o audacioso que a todos conquistou, inclusive a bela Joana Cândida. Rangel (o diplomático) é o temerário que sonhava acordado, mas que não agia objetivamente. Na linguagem de Machado, Rangel não era um homem de saltar muros; vivia na imaginação, nos limites da qual “raptava mulheres e destruía cidades”.
A narrativa se desdobra numa noite de São João, em 1854, no Rio de Janeiro, espaço descrito por Machado, com matizes de universalidade. João Viegas, escrivão de uma vara cível na Corte, recebe amigos em sua casa. Lá estão sua esposa, Adelaide, entusiasmada com a festa, sua filha, Joana Cândida, que o narrador capta no andar, definindo-a como “a graciosa filha do escrivão”, e também Dona Felismina, uma quarentona, “sem prendas nem rendas”, que “vivia espiando marido por baixo das pálpebras devotas”. São três tipos comuns na classe média carioca da segunda metade do século XIX: a mãe comportada, a visitante solteirona e a filha cheia de encantos e promessas.
No centro do conto, Rangel, frequentador da casa, muito educado (de onde o apodo, o diplomático), lia o livro de sortes e prendas, conduzindo as brincadeiras de salão. Era solteiro, não por vocação, mas por circunstâncias, na ironia do narrador. Contava 41 anos. Muitíssimo preocupado na escolha da futura esposa, teria perdido muitas chances. Indecisão e devaneio eram marcas de sua personalidade. Era pacato e muito discreto. Não agia, fantasiava. Frequentava bailes, centrando sua observação nos outros. Tinha predileção por celebridades.
Rangel decide se aproximar de Joaninha. Quer entregar um bilhete amoroso. Pretende casar-se com a moça. Tem certeza de que não haverá obstáculos. Amigo da família, está convicto que o escrivão e a esposa não se oporão ao enlace. Na noite da festa, não perderia a oportunidade. Enquanto conjecturava a forma de entregar o bilhete, deixava-se levar por toda sorte de devaneios. Lhe faltava coragem, muita coragem. Lhe sobravam fantasias, muitas fantasias.
Seus sonhos se estraçalham quando na festa chega um furacão, em forma de amigo de um convidado atrasado. Calisto, o convidado atrasado, carrega consigo Queiróz, um belíssimo rapaz, que trabalhava na Santa Casa. Orçava entre 26 e 27 anos. Era singularmente esbelto. Abafou. Agradava a todos. Na hora do brinde, Rangel chamou o santo do dia (o que incluía Joana). Queiróz pediu a palavra e brindou a mãe de Joana, Adelaide, a quem nominou a “santa de todos os dias”. Comoveu todo mundo. Joana correu para abraçar a mãe. Rangel então percebeu que tudo estava perdido. Mais. Queiróz tocava flauta. Não havia como concorrer com aquele furação. Segundo o narrador, Rangel passou da estupefação à mortificação.
Joaninha ficou “embebida” de Queiróz. Rangel retirou-se. Não dormiu. Chorou. Reconheceu a derrota. Depois de um tempo Joaninha e Queiróz se casam. Rangel testemunha o matrimônio. Machado lembra Shakespeare, e compara Rangel com Otelo. A diferença, consistia no fato de Otelo (Rangel) não matou Desdêmona (Joaninha). No fecho, Machado retoma a crítica ao eterno sonhador. Rangel pensou em se alistar nos Voluntários da Pátria e partir para a guerra no Paraguai. Não se alistou. E nem foi para a guerra. Sonhou, no entanto, que “ganhou algumas batalhas e que se tornou brigadeiro”.