Machado de Assis e o conto “O caso da vara”
Machado de Assis e o conto “O caso da vara”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Há uma certa crítica que imputa a Machado de Assis falta de comprometimento com os problemas de sua época. Não estaria claro se o escritor fluminense seria monarquista ou republicano, se era ultramontano ou se repudiava a autoridade do Papa em questões de disciplina e fé. Principalmente, questionava-se até que ponto Machado de Assis militava contra a escravidão. O tema é recorrente no escritor, que de modo inteligente e muito perspicaz protestou contra instituição que o afetava pessoalmente. É esse o tema central do conto “O caso da vara”, publicado em “Páginas recolhidas”, em 1899.
O fio condutor do conto é a narrativa de Damião, fugitivo do seminário, que frequentava seguindo ordens do pai. Damião homizia-se na casa de Sinhá Rita, que sabia muito próxima de João Carneiro, o padrinho, que o levara para o seminário. Explora a relação de Sinhá e pede interferência do padrinho junto ao pai. Ameaça suicídio. Está desesperado. Sinhá Rita é viúva. João Carneiro (de quem provavelmente é amante) fora amigo de seu marido. Segundo Machado, Sinhá Rita “era querida de João Carneiro”. Contava com 40 anos na certidão, e com 27 no olhar. Era risonha, muito amiga, mas também “era brava como o diabo”. Professora de bordado, era severa com a criadagem; “anda moleque!”, era como ordena que se lhe enviassem um recado. Sinhá Rita era sádica com as escravas. Esse sadismo fora explorado por Gilberto Freyre, que em Casa Grande e Senzala relatava sinhás que mutilavam escravas, de quem desconfiavam.
Em “O caso da vara” está em pauta o sadismo de Sinhá Rita, que violenta - - de todas as formas - - a negrinha Lucrécia. A moça, certamente, é a personagem principal do conto. É um encanto, no conto, em forma de denúncia. Machado a descreve como uma negrinha magra, franzina, com uma cicatriz na testa, uma queimadura na mão esquerda. Orça cerca de 11 anos. Tossia para dentro. Ria, envergonhadamente, também para dentro. Quando ameaçada de apanhar (com a vara) rogava a proteção de Nossa Senhora, que Sinhá Moça lhe negava, argumentando que a Virgem não protegia vadias.
Lucrécia é a escrava criança, submetida e violentada. É um tipo real, para vergonha geral nossa. É o que se comprova, com a indigesta leitura de anúncios de jornal do século XIX: “Vende-se uma negrinha de 13 anos, de bonita figura, coze e faz todo o serviço de casa de família; na rua Senhor dos Passos, n. 139” (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1872). “Aluga-se uma pardinha de 15 anos, para portas a dentro, e uma negrinha de 9 anos, muito esperta, para andar com crianças; na rua S. Pedro da Cidade-Nova, n. 78” ((Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1874). “Negrinha. Vende-se uma linda e vistosa negrinha de 14 anos, se moléstia de qualidade alguma, com princípios de costura, e de todos os arranjos da casa, pois é uma boa ocasião, para quem quiser comprar de particular; na rua dos Ourives, n. 46” ((Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1870). “Vende-se um lindo moleque de 14 anos, copeiro e muito sadio; na rua de S. Pedro, n. 65” (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1870). “Precisa de uma negrinha ou menina pobre para andar com uma criança a serviço leve de casa de família; na rua da Quitanda n. 45, 2º andar” (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1871). Um horror. A história de Lucrécia (que pode ser real) é de igual modo, um horror também.
Damião chega à casa de Dona Sinhá numa sexta-feira de agosto do ano de 1850. Temia muito o pai. Pede intervenção de Dona Sinhá ou, no limite, de João Carneiro, o padrinho, que sabia dominado pela dona da casa. João Carneiro temia o pai de Damião. Torcia para que o Papa baixasse um decreto fechando a Igreja. Estaria livre do encargo. Sinhá Moça deu-se bem com Damião, com quem conversou animadamente, enquanto lecionava suas técnicas de bordado. João Carneiro não consegui demover o pai de Damião, que furioso exigia que o filho retornasse para casa.
Lucrécia ouvia as conversas e não podia se manifestar. Foi ameaçada várias vezes por Sinhá Rita, e sua vara, que batiza o conto. Damião é capcioso, explora maliciosamente a dependência de João Carneiro para com Dona Sinhá. Damião se afeiçoava com Lucrécia, porém não consegue ajuda-la. Não quer desapontar ou desafiar Dona Sinhá. Precisa dela. A posição de Damião pode ser uma representação machadiana de parte de brasileiros, que não aceitavam a escravidão, mas que não se movimentavam de modo enfático. Não queriam antagonizar aos poderosos, com vistas a garantir privilégios.
Os mais descrentes das posições de Machado diriam que Damião encarna, freudianamente, o escritor: tudo via, também se sentia oprimido, porém pouco vez, porque político e dependente de favores. Essa leitura é muito radical e pessimista. Prefiro outra perspectiva, também radical, porém otimista. Transito de Damião para Lucrécia. A menina-escrava nos remete ao escravo a quem não tinha voz. Não fala. Apenas roga a proteção da Santa. Lucrécia (nome tomado de uma célebre Bórgia, italiana poderosa) pode ser protesto de Machado de Assis em favor de quem apenas viveu a opressão sem poder se manifestar.
Ao fim do conto, não se sabe o que ocorreu com Damião. O assunto, que dá início ao conto, é simplesmente abandonado. O narrador centra-se no olhar de Damião para a tragédia de Lucrécia. A vara, instrumento da violência, nesse momento, protagoniza a atenção do leitor, justificando-se o título do conto e a militância de seu autor.