"Deixa ela entrar" de John Ajvide Lindqvist: uma olhada na literatura de terror da Suécia

Nota inicial: resenha com vários spoilers (leia o livro antes de ler esta resenha).

Livro “Deixa ela entrar”, ficção de terror do escritor sueco John Ajvide Lindqvist, best-seller publicado originalmente em 2004. Quatro anos depois, a história foi adaptada para o cinema pelo igualmente sueco Tomas Alfredson, tendo o filme independente obtido vários prêmios, sendo exibido em mais de 40 festivais pelo mundo. Posteriormente, em meados de 2010, a película recebeu uma refilmagem feita por Hollywood, mantendo a mesma essência, ainda que com menos inspiração.

ESTILO (SLASHER E VAMPIRISMO) / TRAMA (BULLYING E PEDOFILIA)

Na história, conhecemos Oskar, garoto tímido que vive com a mãe em um subúrbio da capital sueca, Estocolmo, em meados da década de 1980. Vítima constante de violentos ataques de bullying, Oskar passa seus dias lendo e colecionando notícias sobre serial killers, alimentando um desejo reprimido de vingança. O cotidiano dele muda completamente quando ele conhece sua vizinha Eli, uma garota de doze anos. Em paralelo, a vizinhança é acometida por uma série de assassinatos misteriosos.

A trama envolve dois subgêneros de terror: o slasher, que são as histórias que envolvem um serial killer e a consequente investigação policial dos homicídios, bem como o vampirismo. Inicialmente, tais subgêneros se desenvolvem separadamente dentro do livro. Com o passar das páginas, há o encontro gradual por meio da interação entre o assassino e Eli. Percebemos que a garota é uma vampira e descobrimos, adiante, que ela vive junto com o autor dos crimes. A relação entre ambos é estranha. Eli precisa do assassino para ter um teto e, dada a natureza de sua morfologia, que ele consiga sangue humano, sua única fonte de alimentação (outros alimentos são intragáveis para a garota). Por sua vez, o assassino, nutre desejos sexuais nunca correspondidos por Eli. Ele é, obviamente, um pedófilo.

RITMO E FOCO / RESPEITO À MITOLOGIA

O livro, com suas mais de quinhentas páginas, possui um ritmo lento, várias vezes enfadonho, com momentos interessantes e mais dinâmicos intercalando longas explanações com foco equivocado. Há uma fixação do autor em desenvolver personagens que não agregam absolutamente nada à trama. Seria perfeitamente possível contar toda a história do livro com metade das páginas, sem perda alguma da qualidade literária, diminuindo-se o espaço desses personagens secundários. Com isso, perde-se um tempo absurdo, irritando e cansando o leitor, que poderia ter sido dedicado nas cenas envolvendo os crimes (há uma influência slasher, né?) e, principalmente, nas cenas envolvendo Oskar e Eli. Estão nessas cenas, envolvendo os dois, o ponto mais positivo do livro, fazendo com que o leitor anseie por essas cenas assim que elas terminam.

Por ser tímido e inseguro, devido ao assédio sofrido quase que diariamente, é interessante e tocante ver como Oskar se afeiçoa à Eli. Ela, por sua vez, com seus segredos, se mostra uma personagem instigante. Eli também é uma personagem interessante por respeitar a mitologia do vampiro, como o próprio título do livro sugere (um vampiro só pode entrar em uma casa se for convidado), por exemplo. Sua natureza pode ser dócil ou violenta, conforme a situação (e a fome) se manifeste. Eli, assim como os demais vampiros, pode viver por décadas, séculos.

ALGUNS DETALHES NAS ENTRELINHAS

Vampiros, dentro de sua mitologia, são criaturas naturalmente sedutoras. Isso coloca uma situação provocativa pois, embora seja uma criança de 12 anos (se manteve nessa forma devido à contaminação ter ocorrido nessa faixa etária, Eli vive há décadas, talvez séculos. Ela possui corpo de criança, mas sua mente é de uma criança?

Percebendo que seu protetor (assassino) está ficando velho e descuidado (ele comete erros em alguns assassinatos), Eli pode ter visto em Oskar a chance de substituir o sujeito.

Androginia e homossexualidade são outros dois contextos assuntos que aparecem nas entrelinhas. Em vários momentos, Eli indaga Oskar se ele a aceitaria, se soubesse que ela é um menino. E, constantemente, ela diz que é um menino. Em determinado momento, Eli precisa tomar um banho e, numa cena (melhor adaptada no filme de 2008), ela aparenta não ter um pênis, numa figura andrógina. Seria isso uma caraterística causada pela doença do vampirismo? Seria uma forma de não se envolver sexualmente com o respectivo protetor, visto que, no fundo, Eli é uma criança e/ou está abalada por abusos de pedófilo(s)? Não é possível saber.

A própria questão da pedofilia é tratada de forma pouco aprofundada, servindo mais como o fator motivador que levou o assassino a se aproximar de Eli. Não há análise sobre a origem desse desejo repulsivo no assassino, tão pouco das consequências de investidas e possíveis abusos em Eli.

O aprofundamento nessas questões, assim como na própria questão do bullying, que serve como eixo condutor durante boa parte da trama, fica negligenciado. O autor não desenvolve esses assuntos difíceis que ele adiciona à história, mas, em compensação, gasta uma quantidade grande de páginas para desenvolver tramas desinteressantes de personagens secundários (sobra espaço até para o desenvolvimento do relacionamento de um casal de personagens periféricos). Escolhas equivocadas.

CONCLUSÃO

Provavelmente, Lindqvist quis provocar nos dizendo que o horror não está na vampira faminta ou no assassino em série. Às vezes, no próprio cotidiano, ao qual todos nós estamos envolvidos, é que reside aquilo que apavora. Contudo, esse aprofundamento, que seria enriquecido com temas que o autor teve a ousadia de trazer (bullying, pedofilia, homossexualidade) não ocorre, ficando na superfície.

Entretanto, o autor consegue criar uma obra com boas premissas e os personagens principais (Oskar e Eli) são cativantes e interessantes, salvando a história. O antagonista oscila entre a falta de aprofundamento, o caricato e o gore. As cenas de ação, típicas da literatura de terror, são bem conduzidas.

Em tempos de vampiros com mitologia deturpada, como em “Crepúsculo” (Twilight, 2005), histórias como “Deixa ela entrar” revigoram a temática. Analisando friamente, embora a experiência literária não tenha sido de todo ruim, entre o livro e o filme, prefira a obra cinematográfica de Tomas Alfredson, que foi fiel ao material fonte, e corrigiu, em parte, o problema da perda de foco. Portanto, é um bom livro, mas que tinha potencial para ter sido muito melhor. Prefira o ótimo filme de 2008.

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 25/06/2020
Código do texto: T6987755
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