Diário das minhas leituras/51

21/05/2020 – YUKIO MISHIMA

Livro: Confissões de uma máscara

Autor: Yukio Mishima

Tradutora: Jaqueline Nabeta

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2004

O livro é interessante na medida em que, com grandes traços autobiográficos, acompanha o desenvolvimento do personagem desde a infância, quando também há as primeiras manifestações da sua homossexualidade. O que poderia ser interessante em uma trama fictícia, ou melhor engendrada do ponto de vista literário, pareceu-me bastante maçante no formato de confissões escritas em estilo rebuscado permeado de descrições poéticas. Quando cheguei à parte em que ele apresentava fantasias canibalescas, achei melhor parar e ler alguma coisa que eu realmente gostasse. Não é meramente uma objeção moral, pois eu ainda leria se houvesse algo no estilo ou na forma que me cativasse, mas não há.

22/05/2020 – ELYANDRIA SILVA

Livro: Vestígios para o caminho de volta

Autor: Elyandria Silva

Editora: Camus

Ano: 2018

São poesias rápidas, diretas, mas bonitas e sensíveis e que parecem seguir a orientação de levar a mulher a uma redescoberta do seu valor e do seu potencial num mundo em que ainda são seguidamente reprimidas. Além das questões de amor e relacionamento, chamo a atenção para as poesias em que se versa sobre a morte e sobre a violência provocada pelos homens (incluindo o abuso de crianças).

Alguns belos exemplos colhidos ao longo do livro:

essa noite dormi acordada

já era dia

quando a solidão

daqueles velhos abandonos

resolveu calar a boca

___

uma lenda diz que quando a mulher de quem viemos

vai embora

em algum lugar dourado tem muita risada e alegria

enquanto que aqui

a plantação de estrelas dentro da gente

sucumbe em vários sons de dor

___

meu grande amor tentou me matar algumas vezes

antes que ele conseguisse eu fugi

saí da minha própria vida

para que ele pudesse ficar confortavelmente na vida dele

___

tão bonita era aquela menina morena caramelo

parecia feita de mel

o pai tentou abusá-la

contava à filha

e as duas então tentavam matá-lo na ficção

___

as belas casas que o coração constrói durante anos

para viver conto de fadas amorosos

desmoronam com qualquer sopro doce

de uma boca pintada de gloss

___

um choque brusco

o ato involuntário de mudança para uma nova habitação

talvez a morte pudesse se apertar

para caber nessa definição

___

amar uma alma livre

é o melhor que pode lhe acontecer

também pode ser o pior

se você não souber nem nunca tiver vivido

todas as faces da liberdade

23/05/2020 – CRISTIAN L. HRUSCHKA

Livro: Na linha da loucura

Autor: Cristian L. Hruschka

Editora: Minarete

Ano: 2014

Uma novela bastante ágil e bem interessante, em meio a uma trama onde não se sabe o que é real, o que é sonho e o que é loucura. Nota-se que o escritor é, também, um bom leitor, aparentemente de inspiração rubemfonsequiana.

31/05/2020 – H. G. WELLS

Livro: A máquina do tempo

Autor: H. G. Wells

Tradutor: William Lagos

Editora: L&PM

Ano: 2017

Primeiro livro autoral do H. G. Wells que leio e posso dizer que gostei bastante. Realmente admirável a sua capacidade imaginativa, sendo certo, é claro, que ela está alicerçada em tendências capturadas pelo autor da sociedade em sua própria época. Aliás, o maior mérito dos livros de ficção científica é realmente esse, o de dialogar com o tempo presente e com os rumos que, geralmente inconscientemente, estamos escolhendo para nós. Perguntei-me de início se não seria exagero projetar uma realidade do ano 800 mil e pouco – por que não o ano 12 mil, por exemplo, bem mais perto de nós e, no entanto, tempo suficiente para que não entendamos absolutamente nada do que supostamente será vivido naquela época. Mas é que H. G. Wells não está somente interessado no desenvolvimento da humanidade, e sim no sentido final e último que justificará, ou não, os esforços que temos empreendido no tempo presente. E isso talvez só seja perceptível depois de um tempo assustadoramente grande como o ano 800 mil e pouco. É claro que se pode falar que H. G. Wells tinha em vista a divisão de classes da sociedade inglesa do seu tempo, só que é muito limitador achar que tudo o que ele tinha em mente era uma sátira dessa realidade. Várias das reflexões que o Viajante do Tempo faz enquanto tentava entender a realidade dos Elóis e dos Morlocks são bastante pertinentes ainda em nossos dias para se refletir sobre os rumos da humanidade. Será que um dia chegaremos a um tal estágio de conforto e bem-estar social que nosso intelecto ficará embotado? Não parece tão absurdo, considerando a capacidade da Internet em fazer com que as pessoas parem de pensar por si sós e simplesmente acolham as informações que chegam até elas. Para quê pensar sobre alguma coisa se basta eu digitar no Google que terei a resposta de alguém que pensou por mim? Outra coisa interessante é que, além do intelecto, também a estrutura da família, uma das mais valorizadas, pode perder a sua razão de ser em um mundo que já supriu as necessidades básicas de sobrevivência. De fato, na nossa realidade a família emerge como fonte de segurança, mas quem precisa de segurança num mundo em que a própria violência já deixou de existir? E, no entanto, quantos hoje ousam cogitar que um dia a família não será mais necessária? No caso da trama do livro, esse estado de coisas não durou indefinidamente justamente porque havia a tal divisão de classes que um dia fez com que o instinto de um dos grupos se voltasse contra o outro, por pura questão de sobrevivência – como tudo o mais na natureza. Seria um trágico fim para o nosso ideal civilizatório e Wells parece endossar a visão de que um dia ele poderá se voltar contra nós que pacientemente o arquitetamos. Para que isso não aconteça, uma alternativa seria justamente interromper as rígidas divisões entre classes e promover maior igualdade, só que no presente tempo não há nada a sugerir que a humanidade um dia chegue a esse estágio. Mesmo que isso um dia seja realidade, contudo, permanecerá o inquietante alerta do fim da nossa tão aclamada inteligência a partir do momento em que a própria criatividade para sobreviver se torne desnecessária.

11/06/2020 – YASUNARI KAWABATA

Livro: Kyoto

Autor: Yasunari Kawabata

Tradutor: Meiko Shimon

Editora: Estação Liberdade

Ano: 2019

Não é um livro, é uma pintura ou uma fotografia. A ação não tem tanta importância como o sentimento. O ser humano flagrado por Kawabata ainda não se alienou da natureza ao seu redor – ao contrário, eles ainda são uma coisa só e dessa interação tiram grande parte da beleza da imagem. A ternura ainda é uma marca presente nos relacionamentos e os desejos são simples e puros. O autor não deixa de expor, inclusive, cada um dos silêncios que marcam a conversa entre dois seres, porque sabe que com isso ele nos apresenta um retrato mais fiel e mais bonito. As tradições, aquilo que dá um sentido e coesão a uma sociedade, permeiam toda a ilustração. Nota-se alguns encontros e desencontros, pequenos sonhos e frustrações, pois é disso que somos feitos, e a trama não se resolve no final – trata-se, afinal, de apenas um instantâneo, cuja história é completada pelo olhar do observador. Esse, ao contemplar o quadro todo, sente o coração aquecido e uma leve esperança no futuro da humanidade.

11/06/2020 – MOLIÈRE

Livro: O avarento

Autor: Molière

Tradutor: Dorothée de Bruchard

Editora: L&PM

Ano: 2016

Uma peça deliciosa, muito viva, cheia de humor, intrigas e desentendimentos, em uma linguagem bem acessível e com um “antepassado” do Sr. Scrooge que ainda dialoga bastante com o nosso tempo.

15/06/2020 XINRAN

Comecei a ler “As boas mulheres da China”. A primeira história é uma coisa impressionante. A história da adolescente molestada pelo pai, com o consentimento da mãe, e que procura sempre estar doente para que a mandem a um hospital, local muito melhor que a sua casa, e onde faz “amizade” com uma mosca, é uma das coisas mais fortes, tristes e constrangedoras para a humanidade que já se escreveu. Não é uma historinha inventada para emocionar, é um diário, narrado em primeira pessoa pela própria vítima. O formato de diário e a deliciosa mistura de sagacidade e inocência me lembraram muito a Anne Frank. E, de fato, o “Diário de Hongxue”, ainda que muito mais curto, poderia ser vendido separadamente por aí, porque o seu relato é, também, digno de ser conhecido pelo mundo todo, um eloquente e extremamente sensível testemunho contra o “nazismo” que existe da porta de casa para dentro: o abuso sexual. Se no caso da Anne Frank a gente, naturalmente, lamenta o terrível desfecho de que foi vítima, na história de Hongxue a gente chega quase a ver com alívio o modo como acabou os seus dias nesse mundo mau.

22/06/2020 – XINRAN

Livro: As boas mulheres da China

Autor: Xinran

Tradutor: Manoel Paulo Ferreira

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2009

Ah, como foi bom que todas essas histórias tenham surgido para a Xinran, e não para outra pessoa. Uma pessoa menos sensível e menos sábia poderia ter levado os personagens dessas histórias, todas tão fortes e tão pesadas, a desfechos ainda mais trágicos do que as histórias que elas carregavam atrás de si. O que aconteceria, por exemplo, se ela simplesmente repelisse, indignada, a mulher que se apaixonou por ela? Ou se ela se irritasse com a mulher que, sem qualquer razão aparente, se recusava a sair do quarto do hotel? Verdade que houve, ainda no inicio, uma mulher que se suicidou, mas tão somente porque Xinran não soube do seu caso a tempo. Com muito tato, ela permitia que as mulheres se desnudassem diante de si, trazendo à tona, outra vez, as dores de toda uma vida. Foi essencial a compreensão de Xinran de que não havia uma diferença entre ela (a jornalista, a mulher conhecida) e qualquer outra mulher chinesa (seja uma catadora do lixo, sejam as mulheres que viviam em estado quase bestial no interior do país). Xinran as via todas como companheiras de viagem, com as quais compartilhava a mesma época. Por ser assim, ela também se identificava com cada drama que ouvia, todos fazendo alguma ressonância com a sua própria trajetória, igualmente marcada por traumas insuspeitados para um ocidental. Não tem havido uma única sociedade em que se possa dizer que as mulheres não sejam oprimidas de alguma maneira pelos homens, mas Xinran ainda capta um momento em que isso é reforçado pela força de uma ditadura, irracional como todas as ditaduras, e por isso os dramas, que existiriam mesmo em tempos de liberdade, ganham uma dimensão cruel, de um horror inimaginável para quem nunca teve o desprazer de ser comandado por um tirano. Nessa categoria entram os estupros, inclusive de adolescentes, quase crianças. Mas há, também os danos psicológicos, as separações forçadas, as prisões injustas, todo um sistema que parecia privilegiar a burrice e que acabava por esmagar principalmente as mulheres. Se havia uma que conseguia se sobressair de alguma maneira, era ao custo de dramas impensáveis, era muitas vezes apenas amortecendo as emoções e parando de sentir. Como se não bastasse, há ainda as tragédias naturais. Uma das histórias mais comoventes para mim (se é que há alguma que não tenha sido) foi a de um terremoto, a inacreditável história de uma menina que ficou presa (viva) a alguns andares do chão após a terra tremer. Como o mundo pode ser ruim! Como acontecem coisas perversas com as pessoas, como as tragédias atingem pessoas inocentes! Esse é um pensamento que surge muitas vezes ao longo da leitura, mas é preciso que se diga que não é um livro de desespero apocalíptico. Na expressão dessas mulheres, na voz que Xinran lhes dá, e no próprio comportamento de Xinran ao conversar com elas, vislumbra-se a esperança de tempos mais humanos. Como era bom que essas mulheres tivessem um espaço para falar de si. O serviço que Xinran prestou como apresentadora de um programa de rádio evidencia o importante papel que esse veículo é capaz de representar, quem sabe até nos dias de hoje, onde existe a internet, mas não necessariamente a intimidade de um programa em que a locutora parece se dirigir especialmente a você e aos seus dramas pessoais. Mais uma vez, que bom que esse poder e essa influência foram dados a uma pessoa com a sensibilidade de Xinran. E ainda há aquela primeira história, da qual já falei, uma Anne Frank da China que dialoga com os nossos tempos. Certamente é um daqueles livros que merecem ser lidos. A história das mulheres da China merece ser conhecida e exibida não meramente como as extravagâncias e os horrores de uma cultura ou de um regime político, mas como um painel daquilo que, em algum grau, persiste nos dias de hoje, mesmo no ocidente, pois cada vez mais somos todos uma coisa só, compartilhando a mesma época, com todas as suas contradições e dilemas. Alguém, um dia, ainda há de escrever um livro assim sobre as boas mulheres do Brasil.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/06/2020
Reeditado em 23/06/2020
Código do texto: T6985918
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