O Mapa do Tempo - de Félix J. Palma
Dividido em três partes, o livro narra três histórias, que, entrelaçadas, concentram-se na pessoa de Herbert George Wells, autor de quatro dos livros mais populares de todos os tempos: A Máquina do Tempo, O Homem Invisível, Guerra dos Mundos, e A Ilha do Doutor Moreau. Na primeira parte, narra-se a história de amor de Andrew Harrington e Marie Kelly, história de final trágico; na segunda, outra história de amor, esta de desenlace feliz, entre Tom Blunt e Claire Haggerty; e, na terceira a caçada, empreendida por um jovem inspetor da Scotland Yard, Colin Garrett, a um assassino que ainda não havia nascido.
Deixando os comentários acerca de um aspecto da narrativa, que me desagradou porque me parece gratuito – a inserção na história de dois personagens, ambos escritores, Henry James e Bram Stoker, autores, respectivamente, de A Volta do Parafuso e Drácula, extraídos da vida real e convertidos em personagens da excelente trama concebida pela mente criativa de Félix J. Palma -, concentro a minha atenção na primeira parte da história, e, na sequência, na segunda, e na terceira – e ao tratar desta, direi do meu desagrado e das expectativas, elevadas, que as duas primeiras partes inspiraram-me, que esta me frustrou.
É Andrew Harrington o protagonista da parte que abre o livro. Moço de pouco mais de vinte anos, certo dia, na residência de Charles Winslow, seu primo, com quem se dava muito bem, admira uma pintura, que exibe uma formosa mulher, Marie Kelly, que, veio a saber, era uma prostitua, que vivia em Whitechapel, imundo bairro de Londres. E a vida pregou uma peça em Andrew Harrington, que se apaixona por Marie Kelly. Estamos no ano de 1888. Era o ano de Jack, o Estripador, que aterrorizava os ingleses; o famoso Jack, o Estripador, ainda hoje uma lenda, dono de uma biografia envolta em mistérios.
Andrew Harrington, ocultando de seus familiares, parentes e amigos o seu propósito, inusitado, insensato, insano, vai, certa noite, a Whitechapel, e contata a mulher com quem se deliciaria em várias noites, seguidas horas, num leito de prazeres indizíveis. Apaixonado por Marie Kelly, decidido a se casar com ela, fala de seu projeto ao seu pai, e deste recebe uma bofetada e é expulso da família. E corre, então, Andrew Harrington, ao encontro de sua amada Marie Kelly; e para o seu horror, encontra-a, estirada, retalhada, morta, no quarto dela, onde várias noites passara em sua deliciosa companhia. E o seu sonho desfez-se, num átimo, diante de si o cadáver da mulher que tanto amava. Sabia que era o assassino o personagem que aterrorizava Londres, Jack, o Estripador, cujo nome era desconhecido de todos. Temendo vir a ser encontrado, no quarto, diante do cadáver de Marie Kelly, do quarto retirou-se. A partir de então, viveu uma vida errante, num capítulo obscuro, dramático, de sua biografia, que culminaria com o seu suicídio, em 1896, no quarto de Marie Kelly, se o seu primo, e amigo, e fiel escudeiro, Charles Winslow não interviesse, livrando-o da morte. Falou-lhe o primo de um meio, fantástico, que em Andrew Harrington inspiraria desconfiança, que poderia vir a salvar Marie Kelly. Tal notícia provocou estranheza em Andrew Harrington. Como poderiam salvar Marie Kelly, se ela morrera oito anos antes?! Para suprimir-lhe da cabeça toda estranheza, Charles Winslow falou-lhe de viagem através do tempo, da empresa Viagens Temporais Murray, de Oliver Tremanquai, dos junquianos, de Herbert George Wells, do ano 2.000, da máquina do tempo. O incrédulo Andrew Harrington ouviu-o com uma pulga atrás da orelha. Mas era tamanho o seu desejo de renovar a sua vida com Marie Kelly, que Andrew Harrington, animado pelo seu primo, veio a acreditar na história que ele lhe contara, e, na companhia dele, ruma à residência de Herbert George Wells, em cuja máquina do tempo entraria, e viajaria ao ano de 1888, momentos antes da morte de Marie Kelly, para matar Jack, o Estripador. E Andrew Harrington empreende a fantástica expedição, cujo desenlace não foi do seu agrado. E resignou-se ao destino que o universo lhe reservou. E aqui encerro a síntese da primeira parte. Cuidei não revelar os detalhes que roubaria ao leitor o desejo de descobrir por si mesmo os mistérios que envolvem o encerramento da trama protagonizada por Andrew Harrington, e esclarecida, deslindada, pelo único personagem que podia compreendê-los: Herbert George Wells, a maior autoridade em viagens através do tempo.
Escritas as últimas palavras do comentário que se acercam da primeira parte do livro, principio os que tratam da segunda.
No início desta resenha eu disse que conta a segunda parte do livro de Félix J. Palma o romance de Tom Blunt e Claire Haggerty.
Claire Haggerty, moça orgulhosa, caprichosa, que não cedia às abordagens de seus incontáveis pretendentes, requestada por inúmeros súditos da rainha, na companhia de Lucy Nelson, sua amiga, a alma excitada pela história que envolvia a Viagens Temporais Murray, que prometia uma fantástica aventura ao dia 20 de maio do ano 2.000, dia em que se daria a batalha final, que decidiria o destino dos humanos, entre os humanos e os autômatos, aqueles liderados pelo capitão Derek Shackleton, estes por Salomão, um autômato, compareceu à Viagens Temporais Murray, e participou de uma expedição ao futuro, a bordo do Cronotilus, a máquina do tempo que conduziria os passageiros à data da batalha final entre humanos e autômatos. Outros passageiros de Cronotilus são, além de Lucy Nelson, amiga de Claire Haggerty, Charles Winslow, primo de Andrew Harrington, o protagonista do romance da primeira parte, e Colin Garrett, o jovem inspetor da Scotland Yard que na terceira parte da trama urdida por Félix J. Palma assumirá o protagonismo, e Nathan Ferguson, fabricante de autômatos. Durante a expedição, Claire Haggerty, que, entediada em sua época, pretendia refugiar-se no ano 2.000, em um determinado momento da expedição ao futuro, todos os passageiros do Cronotilus conhecedores do desfecho da batalha entre humanos e autômatos, testemunhas do derradeiro embate entre o capitão Derek Shackleton, o herói humano, e Salomão, o líder dos autômatos, já regressando os cidadãos do século XIX ao Cronotilus, para a viagem de regresso ao seu tempo de origem, desgarrou-se de Lucy Nelson, e afastou-se dos outros passageiros, e procurou abrigo em um lugar qualquer, suplicando aos céus que ninguém do Cronotilus lhe notasse a ausência. Surpreendendo-a, apareceu-lhe, garboso, diante de seus olhos, o Capitão Derek Shackleton. E admirou-lhe a beleza apolínea e dionisíaca, máscula, bruta, e de imediato, a mulher dos fins do século XIX apaixonou-se, perdidamente, por um homem do ano 2.000, e não por qualquer homem; mas pelo Capitão Derek Shackleton, o maior herói de todos os tempos, o herói que, num embate heroico com os autômatos, liderou a espécie humana numa guerra que lhe evitou a extinção. Quis o destino que Claire Haggerty encontrasse, no futuro, o homem dos seus sonhos. E quis o destino que ela, não muito tempo após a viagem de regresso ao século XIX, encontrasse Tom Blunt, o homem dos seus sonhos. E desenrola-se a história de amor, os protagonistas a experimentarem emoções indescritíveis, coadjuvando-os Herbert George Wells, Gilliam Murray, o visionário proprietário da Viagens Temporais Murray, e Mike Spurrell, Jeff Wayne, Bradley e Martin Tucker, e outros figurantes.
O final deste romance, eu afirmei nas primeiras linhas desta resenha, é feliz, mas que ninguém conclua que o romance é isento de drama, de tristeza, de amargura, de angústia; para o desenlace feliz entre os dois pombinhos apaixonados, estes tiveram de superar muitos obstáculos, enfrentar inúmeras adversidades. E não se pode deixar de dizer que a participação de Herbert George Wells foi indispensável para o feliz desenlace do conto de amor entre Tom Blunt e Claire Haggerty.
E agora chegamos à terceira parte da trama arquitetada por Félix J. Palma, das três a única que, com um pouco de constrangimento, confesso, não gostei; digo que o faço, confessando, com constrangimento, porque, repito o que já revelei linhas acima, frustrou-me a terceira parte a expectativa que as duas primeiras deste ótimo livro me inspirara. Se a leitura das duas primeiras partes da obra de Félix J. Palma não me houvessem me surpreendido, e favoravelmente, eu, é provável, teria abandonado a leitura ao encerramento da leitura da segunda parte, e restituído o livro à prateleira, ou, se persistisse na leitura até o ponto final da história, eu o faria de muito má vontade, e não me frustraria, é óbvio, com o que iria ler na terceira parte, que narra a caçada que Colin Garrett, o jovem inspetor da Scotland Yard, empreende a um assassino que nasceria, décadas depois, pois as duas primeiras partes nenhum agrado me haveria de despertar. Não foi, todavia, o que se deu. Agradou-me o livro, e desde a primeira linha; daí, eu me constranger-me ao ter de criticar-lhe a terceira parte, que não me contentou; e o faço em poucas linhas, no desejo de conservar comigo o prazer da leitura deste livro surpreendente, que não perde seu valor por causa de seus pontos, poucos, que me descontentaram.
Colin Garrett, jovem inspetor da Scotland Yard, deparou-se com um caso de assassinato, que o intrigou sobremaneira, envolto em mistério. Estudou o caso, e concluiu que a arma utilizada na perpetração do homicídio não poderia ser encontrada em seu tempo, mas no futuro, no ano 2.000, ano que, numa expedição a bordo do Cronotilus, conhecera, e não muitos dias antes, e o assassino seria, ou o Capitão Derek Shackleton, ou um dos seus soldados humanos, que, coadjuvando-o, combatiam os autômatos liderados por Salomão, o autômato que era o arquiteto da destruição da civilização humana e da aniquilação dos humanos. Não muitos dias após o primeiro assassinato misterioso, sucederam-se outros dois, sendo que as duas vítimas tiveram as suas vidas ceifadas, do mesmo modo que a primeira, por uma arma que não existia em fins do século XIX. Mas poderia o inspetor jovem da Scotland Yard prender pessoas que ainda não haviam nascido, pessoas que ainda não existiam? As leis britânicas que regem a sociedade de fins do século XIX poderiam ser invocadas para julgar pessoas que que, nascidas no século XX, cometeram crimes no século XIX, isto é, antes de nascerem?
Nesta terceira parte do romance de Félix J. Palma, o tom é distinto dos que lhe antecedem; não repete, aqui, penso, o autor o êxito do enredo com que ele desenvolve as duas partes anteriores. A qualidade da narrativa é a mesma. É Félix J. Palma um exímio narrador, tem o domínio da técnica narrativa. Estou me antecipando ao motivo que projetei escrever para o encerramento da resenha.
Dando fim à curta digressão, trato de um ponto ao qual aludi em outras linhas desta minha resenha: O que se refere à participação de Henry James, autor de A Volta do Parafuso, e Bram Stoker, autor de Drácula. A presença de ambos os personagens, teletransportados, por Félix J. Palma, da realidade para a ficção, na galeria de personagens que animam o livro parece-me obra do desejo de Félix J. Palma homenagear escritores que admira. Não encontro uma razão plausível para a existência deles na trama. O autor inseriu-os para elogiá-los, presumo; todavia, a trama não pede a participação deles; Henry James e Bram Stoker podem ser excluídos da história que esta nada perde em valor; ganha valor, acredito. E nesta história faz-se presente Herbert George Wells. E com estas poucas palavras, encerro os meus comentários acerca da terceira parte do livro.
Mapa do Tempo é um romance de leitura agradável. O estilo de Félix J. Palma é cativante, envolvente, exuberante; é detalhista, minucioso, sem ser insosso; prende a atenção do leitor da primeira à última linha. O leitor lê uma trama envolvendo personagens tirados da realidade, Herbert George Wells, Bram Stoker, Henry James, e Jack, o Estripador, e Joseph Merrick, o Homem-Elefante, e personagens saídos da imaginação do autor. Acompanha os dramas de Andrew Harrington, Marie Kelly, Charles Winslow, Tom Blunt, Gilliam Murray, Claire Haggerty, Colin Garrett, e mais uma dezena de personagens de uma galeria de tipos cativantes. Herbert George Wells, conquanto secundário nas primeira e segunda parte, é o protagonista do livro - e é o seu antagonista Gilliam Murray, o proprietário da Viagens Temporais Murray.
Félix J. Palma oferece aos seus leitores uma trama bem arquitetada, e não é triturado por aberrações que os paradoxos temporais que tal gênero – o da viagem através do tempo – proporciona, pois soube trabalhar o tema com destreza incomum.
E há muito mais no livro. E é-me impossível, na extensão de uma resenha, dar a conhecer toda a substância desta obra que muito me agradou. E um dos seus ingredientes é a mensagem, que uma ruiva misteriosa entregou a Herbert George Wells, mensagem escrita numa caligrafia que ele tão bem conhecia.