As recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto
As recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
No caminho para o Rio de Janeiro, saltando do trem, Isaias Caminha, na expectativa de ser servido de café e bolo em um bar da estação vê um rapaz alourado ser servido antes dele. Isaías foi preterido por sua cor, ainda que tivesse o dinheiro necessário para a compra da merenda. Ferido pelo contraste, curtiu uma raiva muda, que por pouco não virou em pranto. Essa passagem, muito provavelmente autobiográfica, é um dos núcleos do romance “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, o primeiro publicado por Lima Barreto.
Há duas partes relativamente distintas nesse belíssimo livro. Na primeira parte o narrador relata que o jovem Isaías decide tentar a vida no Rio de Janeiro, descreve a viagem, os primeiros dias (cheios de dificuldade), alcançando o momento no qual começa a trabalhar no jornal. O tema do racismo parece ser o ponto mais forte nessa primeira sessão. Na segunda parte o narrador descreve a vida de Isaías na redação. Cuida-se, nesse passo, de uma fortíssima crítica à imprensa brasileira da época. Pode-se pensar que se tratam de dois livros. Há, no entanto, um ponto em comum que salta aos olhos do leitor atento: Lima Barreto está em todo lugar.
O enredo é simples e bem engendrado. Retornando para o interior, e escrivão no Espírito Santo, Isaías registrou suas memórias. Isaías era escrivão na pomposa Coletoria Federal de Caxambi. Um promotor havia deixado uma revista no cartório. Na revista havia um artigo que explorava o tema da eugenia, da seleção racial, um dos assuntos centrais do século XIX. Vale, nesse ponto, a leitura de “O espetáculo das raças”, de autoria de Lilia Moritz Schwartz, a biógrafa de Lima Barreto. Os dois livros se completam, aos quais pode se acrescentar “Retrato em branco e preto”, da mesma autora. Essa movimentação recente de destruição de estátuas radica, de algum modo, em reação (tardia) a esse imenso problema que não pode ser negligenciado. Está em jogo algo mais forte do que a titularidade para a narrativa histórica.
O problema era também o Nina Rodrigues, professor na Faculdade de Medicina na Bahia, que em “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” defendeu códigos penais distintos, cuja aplicabilidade atenderia, entre outros quesitos, a cor da pele. Um código para brancos, outro para negros. Há um quadro de Modesto Brocos y Gómez, denominado de “A Redenção de Cam”, de 1895, que revela essa obsessão com um “branqueamento da população”. João Batista Lacerda, médico no Rio de Janeiro, também defendeu enfaticamente essa tese, participando, inclusive, de um congresso sobre branqueamento de raças, realizado em Londres, em 1911.
Isaías pretendia rebater esses argumentos. O sonho de Isaías era ser doutor, e por isso deixou o interior. Estudaria na capital. Observou que se fosse doutor resgataria o pecado original de seu nascimento humilde, “amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo” de sua cor. Queria ser doutor. Acrescentava que o título era mágico, que tinha “poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos”. Esperava receber cumprimentos do tipo “Doutor, como passou?”, “Doutor, como está?” Teria prerrogativas, direitos especiais, privilégios. Além do que, “teria direito a prisão especial e não precisava saber nada”.
Na parte na qual narra sua vida no jornal tem-se um “roman a clef”, isto é, personagens reais são escondidos sob pseudônimos. Lima Barreto bateu forte no Jornal “O Globo”. Foi muito duro com o escritor João do Rio, que no livro é referido como mistura de “suíno e símio”. João do Rio é o personagem Raul Gusmão. Ao que consta, em uma carta ao crítico José Veríssimo, Lima Barreto argumentava que o romance era atemporal e que aqueles personagens existiam em todos os jornais, em todos os tempos. Não sei, há muita coisa que pode passar despercebida para o leitor contemporâneo, o que faria desse livro uma obra datada. Porém, inegável, os tipos que revela transcendem no tempo e, por isso, concedo, com razão nosso escritor.
Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha” Lima Barreto explorou a desilusão com a justiça, um tema que lhe era recorrente. Em dado momento registrou que “ a polícia do Brasil só serve fazer vingança, mais nada”. Combateu o bacharelismo, o preconceito racial e o desencanto com a política. Tratou do patriotismo ingênuo, assunto que retomou com vigor no “Triste fim do Policarpo Quaresma”. O positivismo é também objeto de sua violenta crítica. Lima convivia com militares, trabalhava no Ministério da Guerra. O meio militar havia abraçado o positivismo como ideologia. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor na escola militar era o campeão da causa. O lema da bandeira era de inspiração e autoria positivista.
Lima foi implacável com o poder da imprensa. Jornalistas que se perceberam no romance hostilizaram o escritor fluminense. Na pessoa de Lobo, o consultor gramatical do jornal, Lima castigou os puristas da gramática. Nesse ponto, convergia com as opiniões de Monteiro Lobato. A diplomacia e a violência policial, a par do sistema eleitoral então vigente também foram objeto de duras observações.
A galeria de personagens é muito rica. O narrador é o próprio escrivão Isaías Caminha. O pai era inteligente e ilustrado, que o “estimulava pela obscuridade de suas exortações” o que corresponde, biograficamente, ao pai de Lima Barreto. Isaías ama a mãe, mas dela se afasta e dela se descola. Lembra que o espetáculo do saber de seu pai, realçado pela ignorância de sua mãe e de outros parentes dela, surgia seus olhos, como um deslumbramento. A professora primária é Dona Ester, que pode realmente ter sido uma professora que o ensinou. Na primeira parte do livro há ainda o Felício, formado em Farmácia, o tio Valentim (que era carteiro) e o Coronel Belmiro. O Doutor Castro é o deputado que tudo promete, mas que nada cumpre: o pistolão que lhe faltou. Quando partiu para o Rio, com uma carta de recomendação, tinha certeza de que sua situação estaria garantida, que obteria rapidamente um emprego, que iria às aulas, e que em seis anos seria doutor. Enganou-se, completamente.
Na segunda parte, tem-se um passeio pelo Rio de Janeiro do início do século XX. Há um jornalista com nome russo (Ivan Gregorovitch Rostóloff). Na delegacia, há um delegado que destratou Isaías. O narrador sentiu-se ferido pela atitude do policial, que o acusou de furto. Julgava que o delegado era um representante do governo, da administração jurídica de seus direitos no Brasil e “como tal, insistia, merecia um tratamento mais respeitoso”. Há o dono do jornal, o Doutor Ricardo. Abelardo é o poeta e revolucionário. O Pacheco é o redator-chefe do jornal. Antonio Galo era o charadista. Pilar de Giralda, a contista erótica.
Pelo registro, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é um livro de história. Como afirmou um grande crítico (Carpeaux) a história não se faz com armas. A história não é o teatro dos generais e dos diplomatas. A verdadeira história passa despercebida, tranquilamente, no centro da alma humana. Contando o que viu, e o que viveu, Lima Barreto torna-se agente desse registro histórico, ainda que não o faça tranquilamente, justamente porque, nesse mundo de poucos originais e de muitas cópias, fazia parte daquele grupo para o qual a história maldosamente negava oportunidades e condições de superação.