CONHEÇA SEU IDIOMA E SUA LITERATURA
Sempre estive na biblioteca. Lia livros e livros. Eram leituras que eu deixava na minha memória, muitas das quais acabavam esquecidas nas estantes das minhas lembranças, em desuso como os livros lidos, que eu bem poderia ter dividido com alguém. Nunca me veio a ideia de resenhá-los. Finalmente, resolvi entrar nos livros pra nunca mais deles sair. Descobri, pois, que a resenha é a oportunidade que o leitor tem de ruminar um bom texto, saboreá-lo de novo, e compartilhar a leitura com os outros leitores.

Na minha biblioteca, muitos dos livros trazem um carimbo bem sentimental e valioso: “Biblioteca Carlos Cunha. São Luís – Maranhão”. Herança sentimental, sim! Eis um livro com esse carimbo: CONHEÇA O SEU IDIOMA, Volume 1, de Osmar Barbosa, bem antigo, em cujas páginas há ensaios de caminhos de traças interrompidos. São textos de escritores brasileiros renomados, com a ajuda dos quais o professor Barbosa faz o seguinte roteiro de estudo: 1. Interpretação de trechos; 2. Emprego do vocabulário; 3. Pesquisa gramatical e 4. Estudo da gramática normativa; 5. Pequena biografia do autor do texto literário escolhido para estudo.

Assim, são abordados vários temas gramaticais: classes de palavras, termos da oração, complementos nominais, adjuntos adnominais, agentes da passiva, interjeição, vocativo, conectivos, expressões denotativas, modelos de análise de oração absoluta, as funções de quando e quanto, acentuação gráfica e emprego de iniciais maiúsculas e minúsculas. Alguns estudos gramaticais caducos, posto que o livro data de 1967, publicado pela Comércio e Importação de Livros “CIL” S.A.

O que mais engrandece a obra não são as lições gramaticais, muitas das quais já ultrapassadas pelas atuais Normas da Língua, como já dito. São os textos: 50 textos de autores brasileiros que vão desde um fragmento de uma obra como o Guarani a um conto crítico de Viriato Correia, intitulado “A Sabatina”. “O Brinquedo Roubado”, de Humberto de Campos; “Apólogo”, de Machado de Assis; “Saudades”, de Casimiro de Abreu, “Ismália”, de Alphonsus Guimaraens; “Poemas de duas mãozinhas”, de Jorge de Lima e tantos outros que contribuíram para o engrandecimento da literatura nacional.

O primeiro texto que serviu de apoio às explicações sobre Classes de Palavras, foi “A Sabatina de tabuada”, de Viriato Correia (p. 11). Como bem dizia o escritor, a sabatina de tabuada era, sem dúvida, o grande pavor dos meninos de seu tempo. Ele narra, de forma bem realista, o tempo dos meninos na fila do medo, no momento em que eram sabatinados pelo professor, cuja voz, ríspida e veloz, trazia perguntas monstruosas para amedrontá-los e massacrá-los: “três vezes sete, multiplicado por doze, menos cinquenta e dois, dividido por cinco...”
Durante as sabatinas, os alunos ficavam em fileira. A pergunta, comumente não respondida, era passada para os alunos que se seguiam atrás: “ A resposta devia ser dada imediatamente, em quatro ou cinco segundo. Se o aluno da ponta da fila não respondia acertadamente, o professor, com rapidez, passava ao seguindo, ao terceiro, ao quarto, ao quinto, aos outros”. A narrativa trabalha com elementos coordenativos que dão ideia de rapidez e autoridade, denunciando o ensino tradicional no qual o professor era considerado um “lobo-mau” do conhecimento: “Adiante, adiante, adiante, ia ele dizendo, apressadamente, de indicador esticado, apontando menino a menino”.

Aquele “lobo-mau” educacional tinha uma arma poderosa com a qual castigava todos os pequeninhos homens que não se dedicavam ao estudo da tabuada: a palmatória. Se algum menino respondesse à pergunta do professor, este menino aplicaria os “bolos” nas mãos dos colegas que não responderam. Se nenhum menino respondesse à pergunta, seria o próprio professor a aplicar as palmadas. O narrador-menino do conto de Viriato Correia, em dez minutos de sabatina, com as “mãozinhas inchadas e sangrando”, contava sua história. Quando voltou pra casa, mostrou aos pais suas mãozinhas. Os pais ficaram horrorizados, principalmente a mãe. Mas havia um tio tradicionalista, que abraçava a ideia de que o ensino da palmatória não fazia mal à educação do país: “Criança merece sempre bordoada (...) Bordoada nunca faz mal à criança”. Enquanto mudam a aplicabilidade da educação no país, as mães não mudam nunca. E foi esta a fala da mãe do nosso pequeno narrador: “Isso é muito fácil de dizer quando o filho é alheio”.

A crônica seguinte é uma descrição poética de Paulo Barreto sobre COPACABANA (p. 17). A praia, o monte do Leme, os automóveis, a lembrança do passeio que o mar fazia na própria areia deixando nela o rasto da umidade; a arquitetura de casas à holandesa, terraços, mirantes, varandas, denunciando uma arquitetura renascentista; as casas de diversões e encontros entre chás servidos ao ar livre: “senhoras e meninas e rapazes vestidos de branco a conversar, a rir, e os automóveis indo e vindo com criaturas que riam, estabeleciam a corrente comunicativa de uma alegria macia e imensa.” Um retrato fiel à Praia de Copacabana de antigamente, tão diferente da atual “Princesinha do Mar” .

Para trabalhar o artigo, o professor utilizou “O Brinquedo Roubado”, de Humberto de Campos, por meio do qual o escritor descreve a triste lembrança de um menino pobre que, na casa de seus primos ricos, viu-os escolher lindos brinquedos que os pais mandaram pedir no estabelecimento de Pires Almeida & Cia. “Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios...” Enquanto os seus primos ricos escolhiam seus brinquedos, o menino pobre limitava-se a pensar: “Ninguém se apercebeu que ali estava um menino órfão, mais infeliz que as outras crianças e que, por isso mesmo, precisava mais que as outras, de uma esmola de alegria”. Foi nessa meditação que o menino pobre “escolheu” o seu brinquedo sem que ninguém percebesse. Era “pequenino carro pintado de vermelho”. Mas quando foram contar os brinquedos. Faltava um. “Não me recordo, hoje, que foi que aconteceu. Entreguei o brinquedo”. O menino pegou sua surra, e “o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre o tapete, no momento de abrir a caixa.”

Para o estudo do adjunto adnominal, o professor escolheu o soneto Língua Portuguesa, de Olavo Bilac. Dois quartetos e dois tercetos em decassílabos, cujas rimas emparelhadas conversam sobre a origem latina da língua, oriunda da terra e versos de Camões: “Última flor do Lácio, inculta e bela...”

No entremeio das atividades, o professor ainda ilustra seus estudos com preciosidades literárias como a “Lenda do Diamante”, que extraiu de “Nossas Lendas”, de Nair Starling. A lenda trata da história de amor entre a índia Potira e o índio Oiti, que desceu o rio para combater tribos inimigas. Passadas doze luas, o guerreiro não voltou. Quando veio a certeza de que seu amado havia morrido, “Potira chorou de saudade. Suas lágrimas misturaram-se com a areia da praia, e Tupã transformou-as em diamantes.” Eis a origem dessa pedra preciosa.

Que venham o rádio, a televisão, a internet, as redes sociais, os e-book e sei lá mais o quê. Mas o livro sempre vai ser o livro. Chegam as traças, os cupins, novos acordos ortográficos, novas poesias, novos contos e romances, novos gêneros de arte, novos estilos de época; novos séculos... Porém, o livro, mais antigo que possa ser, sempre terá uma história pra contar, sempre fará um leitor feliz, ao abrir suas páginas. Obrigada, professor Osmar Barbosa!...
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 03/06/2020
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T6966663
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