Diário das minhas leituras/50

14/03/2020 – RYUNOSUKE AKUTAGAWA

Livro: Rashômon e outros contos

Autor: Ryunosuke Akutagawa

Tradutor: Madalena Hashimoto Cordado e Junko Ota

Editora: Esdra

Ano: 2008

Eu já conhecia os dois contos de abertura (Rashômon e Dentro do bosque), que são os mais conhecidos dele e que deixam antever um escritor formidável. Comecei então esse livro com expectativa altíssima, e talvez por isso o meu ímpeto tenha sofrido um abalo, pois os demais contos me agradaram bem menos. O que achei interessante foi a capacidade do autor em revisitar temas e histórias antigos da história e da literatura japonesa e "atualizá-los". Isso parece ter demandado uma grande pesquisa e seu esforço nesse sentido é admirável. Digno de nota são os textos que recontam episódios tradicionais da introdução do cristianismo no Japão, um tema que eu realmente não esperava. A abordagem parece reforçar a mensagem cristã e lembra, pelo conteúdo moral, os contos do Nathaniel Hawthorne. Em geral, essas histórias cristãs parecem típicas do romantismo. "O mártir" é talvez a mais elaborada, com incêndios, dramas e reviravoltas, mas durante a leitura eu me lembrei do que o Heinrich Kleist fez no excepcional "Terremoto no Chile", também uma recriação cristã de eventos passados, e percebi que o conto do Akutagawa está longe de alcançá-lo. Há contos que prestam tributo aos grandes escritores do passado e que provavelmente fazem mais sentido e causam mais prazer a quem já tenha conhecimento sobre a tradição literária no Japão e seus personagens mais destacados. O conto que encerra o livro, "A vida de um idiota", é basicamente o testamento do autor, composto por vários "textículos" que, ainda que com uma nota mais lírica, expressam uma visão decantada da existência do próprio autor, pois o texto é autobiográfico - tudo isso viria a culminar no suicídio de Akutagawa aos 35 anos. O existencialismo é sempre um tema que me toca, mas não cheguei a ter alguma emoção especial com a maneira que o escritor o expressou. Quero ler outro dele esse ano, "Kappa e o levante imaginário", que parece ter seleção bem diversa, para ver se a impressão melhora.

24/03/2020 – KAMILA SHAMSIE

Livro: Sombras marcadas

Autor: Kamila Shamsie

Tradutor: Débora Landsberg

Editora: Alfaguara

Ano: 2011

Este é um livro escrito à moda de García Márquez. A paquistanesa Kamila Shamsie faz um romance que é transgeracional como um “Cem anos de solidão”, mas também transgeográfico. A trama acompanha a história da japonesa Hiroko desde a queda da bomba em Nagasaki, em 1945, até os acontecimentos dos Estados Unidos à época do 11 de setembro. No meio, há capítulos na Índia e no Paquistão, sem falar em incursões no Afeganistão, na Turquia, no Irã e no Canadá. O estilo narrativo da autora também lembra bastante o do escritor colombiano, mas é preciso dizer que, pelo menos para mim, ela esteve longe de causar um impacto semelhante ao de Isabel Allende em “A casa dos espíritos”, nitidamente inspirada no Gabo e que inclusive está à altura dos livros dele. No caso do livro de Shamsie, a trama não chegou a me empolgar, sendo que os melhores momentos, para mim, foram os que se passaram na Índia. Tive a esperança de que houvesse um envolvimento direto dos personagens nos acontecimentos do 11 de setembro, seja como alguém no World Trade Center ou até como terrorista, mas a parte americana da história já começa um pouco depois do ocorrido. De toda forma, há ainda o clima de desconfiança com os árabes em geral e que levaria ao desfecho da obra. A autora parece ter feito bastante pesquisa para o livro, o que é bom. Sem dúvida fatos importantes do século XX e início do XXI, assim como as relações conflituosas entre povos e nações no mundo moderno, estão bem presentes ao longo do livro. O que não sei é se eles foram dispostos da melhor forma possível para o leitor.

14/04/2020 - JUN'ICHIRO TANIZAKI

Livro: As irmãs Makioka

Autor: Jun'ichiro Tanizaki

Tradutor: Leiko Gotoda, Kanami Hirai, Neide Hissae Nagae, Eliza Atsuko Tashiro

Editora: Estação Liberdade

Ano: 2019

É meio senso comum dizer que se esteve tão envolvido com os personagens de alguma história que, ao final da leitura, houve uma sensação de vazio e abandono. Acho, porém, que em poucos livros isso será uma verdade maior do que a de “As irmãs Makioka”. Muito disso, imagino, se dá porque a história do livro é bastante pé no chão e está crivada pela marca da realidade. Isso faz com que o leitor se sinta mais próximo, que compreenda as aparentes trivialidades do cotidiano ali narradas, e as esperanças que estão em constante competição com a vida prática e as necessidades do dia a dia. Não que não haja drama e, inclusive, momentos de leitura vertiginosa diante de algum incidente em especial. O conflito maior do livro é entre a tradição da sociedade japonesa, e especificamente de uma família de elite, mas decadente, e a modernidade. Duas personagens encarnam dois estilos distintos de se lidar com os ritos e a tradição. Na caçula Taeko é mais visível o desejo e a necessidade de se romper com o modelo vigente (também se vê muito bem a pena que esse comportamento de rebeldia costuma trazer). Na tímida e recatada Yukiko, no entanto, nota-se outra faceta de inconformismo com a tradição, que é o da submissão contra a vontade. É como se a pessoa intuísse a pena para os recalcitrantes e por isso achasse melhor se submeter, mesmo ao custo da própria felicidade. No entanto, nessas pessoas existe um eterno conflito entre reagir e se submeter e por várias vezes ela tentará fazer valer a sua vontade mesmo que isso ofenda algum rito estabelecido. Ela é, de toda forma, uma criação da tradição contra a qual ora se volta e ora se submete. E no meio disso tudo há Sachiko, espécie de para-raios dos conflitos da família, sempre em busca de uma síntese que seja agradável para todas as irmãs, sem, contudo, desagradar a sociedade. Já a irmã mais velha, Tsuruko, casada e vivendo longe, é também a mais rígida, mas também essa rigidez não deixa de ser uma imposição da própria tradição a que precisa se submeter para manter as aparências, e no fim de tudo ela também se sente só e desejando ir com as irmãs ao teatro. Essas as quatros irmãs que dão nome ao livro, mas o leitor também provavelmente se identificará facilmente com Teinossuke, o marido de Sachiko, por se mostrar uma voz de equilíbro, e de certo não deixará de torcer por Itakura, um dos amores de Taeko, nem de se revoltar, em algumas partes, com outro desses amores, Okubatake. Com frequência, o leitor vai compartilhar das mesmas esperanças dos personagens: “Agora Yukiko casa, não é possível!”. Vai se ver envolvido em tragédias climáticas, em doenças perigosíssimas, em separações doloridas – ah, vai simpatizar também com a pequena Etsuko. E tudo são coisas comuns da vida. A escrita de Tanizaki é bem objetiva, seus capítulos são curtos, e ele se apaga para que os seus personagens se sobrassaiam – trata-se de um livro em primeira pessoa no qual o narrador só assume essa voz em cinco oportunidades (eu contei). E olhe que são mais de 700 páginas, extensão suficiente para que nos acostumemos ainda mais com a história e seus personagens e manifestemos o desejo de prosseguir com eles indefinidamente. E praticamente nunca há tédio na leitura, mesmo quando só há narração, porque o autor nos coloca na cabeça dos personagens. Não estamos, é certo, sujeitos às tradições japonesas da década de 30, mas temos, cá nesse lado ocidental, também as nossas, mesmo nos dias de hoje, e não perderá quem tentar aplicar as situações do livro à nossa própria realidade de hoje, ainda bastante conservadora e preconceituosa em vários aspectos. Se é preciso outra prova de que é um livro apegado ao cotidiano, basta dizer que a última frase dele é sobre uma diarreia.

20/04/2020 – JULES VERNE

Livro: Viagem ao centro da Terra

Autor: Jules Verne

Tradutor: Jorge Bastos

Editora: Zahar

Ano: 2016

A pandemia (e o fechamento das bibliotecas) me fez interromper o meu ano asiático. Aproveitei a ocasião para ler o meu primeiro Jules Verne. “Viagem ao centro da Terra” é interessante por mexer com muito do nosso imaginário. Mesmo depois de termos descoberto praticamente tudo o que havia para se descobrir na superfície do globo, não podemos dar por encerrada a nossa curiosidade sobre novos lugares e novas experiências. Enquanto hoje a tendência é passar essa expectativa para outros planetas, Verne sugere um mundo próprio debaixo dos nossos pés. Mesmo que nada do que ele sugere possa corresponder ao que realmente existe abaixo de nós, é certo que ainda não conhecemos o suficiente a respeito dessas profundezas e isso é suficiente para que ainda hoje a história imaginada por ele encontre ressonância e desperte o interesse de novos leitores. Trata-se de um exercício literário bem interessante e bem difícil de se fazer, pois não é simples criar um universo todo desconhecido e torná-lo minimamente verossímil. Há, é claro, muito da lógica do Europeu dominador e racionalista levando adiante a sua sanha civilizatória, mas no fim das contas é um livro que entretém bem e, como dito, mexe com o nosso imaginário.

20/04/2020 – RUBEM FONSECA

Livro: O seminarista

Autor: Rubem Fonseca

Editora: Agir

Ano: 2009

Lembrei que li “O caso Morel” há mais de dez anos e que ele me impactou bastante. Esperei sentir algo parecido com esse “O seminarista”, mas estive longe disso. Na verdade, a banalidade das mortes ao longo da trama não me sensibilizou, não me chocou, não me entusiasmou, enfim, não provocou nenhuma sensação em especial além da indiferença e da vontade que acabasse logo. Pensei em desistir no meio e só fui adiante porque é curtinho. Não deixei de notar também que muitas saídas do personagem são pra lá de inverossímeis. Do Rubem Fonseca, agora, eu só vou procurar as coisas mais antigas.

20/04/2020 – ORHAN PAMUK

Livro: Meu nome é vermelho

Autor: Orhan Pamuk

Tradutor: Eduardo Brandão (com base nas edições francesa e inglesa)

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2008

A originalidade narrativa é o ponto forte do livro. Ele começa com o relato de um morto, o que, para nós, não é grande novidade desde o Brás Cubas, mas há depois alguns momentos de soberba criatividade, como quando a voz principal é a de um cão (Kafka fez isso também, é verdade), a de uma árvore, a do dinheiro, a da morte, a do cavalo, a do próprio diabo, entre outras. Quase todos esses momentos nascem a partir de um satirista que improvisa histórias a partir de um desenho que lhes fazem em um café. Não se trata da trama propriamente, que, contudo, também é composta pela alternância da primeira voz entre os personagens, com apelos à metalinguagem e sem as limitações da nossa realidade física – o encontro com Alá no céu, por parte de um personagem morto, é um desses momentos igualmente criativos. Mas o livro é, em termos de enredo, sobre a atividade de pintores miniaturistas em fins do século XVI, vivendo o conflito entre manter o legado da pintura que reverencia Alá e a outra, europeia, que despontava como uma ameaça herética. Há muitas discussões e descrições de pinturas e essas não estão entre as partes mais agradáveis de se ler – em mim, ao menos, fica a impressão de que seria preciso “ver” alguma coisa dessas tantas que são descritas, mas, por mais que se fale em pinturas, não há uma única no livro todo que possa “auxiliar” o leitor – isso, é verdade, engrossaria um livro já bastante grosso, mas seria algo que me satisfaria mais do que ler descrições e relatos que, por vezes, chegaram a ser enfadonhos. Há um tanto de mistério na história, crimes, romance e descrições mais cruas de atividades sexuais do que se imaginaria em meio a uma cultura marcada fortemente pela religião. É também um mérito que o universo antigo da Turquia, com sua realidade tão diversa da nossa, possa hoje ser lida pelos ocidentais. Alguns trechos que me agradaram durante a leitura, a ponto de eu registrá-los:

“- Não se esqueça do seguinte: quando o fogo do amor nos devora antes do casamento, o casamento vem apagá-lo e não deixa mais que um triste amontoado de cinzas, enquanto o amor que nasce depois do casamento também acaba se apagando, mas para ceder lugar à felicidade. Apesar disso, há uns imbecis que se apaixonam antes e que lançam em vão seu amor nas chamas. Isso tudo por quê? Porque imaginam que o amor é o que há de melhor na vida.

- Se não é ele, o que é?

- A felicidade, ora! O amor, assim como o casamento, nos ajuda a alcançá-la: é para isso que servem um marido, uma casa, filhos, um livro”.

"De repente, o mundo se apresentava a mim como um imenso palácio cujos aposentos se comunicam por mil e uma portas escancaradas, e podíamos passar de um aposento ao outro valendo-nos das nossas lembranças e da nossa imaginação. Mas a maioria das pessoas é preguiçosa demais para fazer uso desse dom e prefere ficar encerrada sempre no mesmo aposento".

E tem ainda o personagem que morre, encontra Alá e pergunta:

"Qual o sentido disto tudo... deste mundo?

'Mistério', ouvi em meus pensamentos, ou talvez tenha sido 'miséria', mas não tenho certeza".

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/05/2020
Reeditado em 23/05/2020
Código do texto: T6956148
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