PREFÁCIO DO LIVRO O PAVILHÃO DOS LOUCOS AMORES
TODOS TÊM SUA HISTÓRIA PARA CONTAR
As regras de convívio de uma sociedade são dadas por uma elite central pensante – portanto, dominante – e se espraiam até os muros que a cercam. Tal modelo político expande-se no espaço, do mesmo modo que os círculos produzidos pela pedra jogada num lago. Os círculos só se detêm nas margens. E, no caminho, vão sendo deformados, submetidos a relações de poder que são replicadas, transformadas e pervertidas. Para os homens “típicos”, ou “integrados”, as margens são contidas por muros altos, que esses homens veem como intransponíveis, porque, se de um lado os aprisionam, de outro significam a materialização de uma zona de conforto.
Indivíduos há que ultrapassam esses limites, esses muros pontiagudos, porque, para eles, a sociedade organizada não serve. Então contestam-na, mas logo presos e vigiados, são jogados ao mar na frágil barca dos loucos, uma entidade que habitava o imaginário medieval, depois utilizada como alegoria no célebre romance Ship of Fools, de Catherine Anne Porter. Os passageiros dessa nau mítica são os que Linda Hutcheon chama de ex-cêntricos, seres que não estão no centro da sociedade, mas, sim, à sua periferia. A humanidade raramente se indaga se essa barca não seria, em verdade, a única capaz de explicar criticamente a corrosão das normas e valores em nome dos quais foram punidos. Segundo Foucault, a história nos cerca e dá limites; paradoxalmente, não nos explica a nós mesmos, mas diz no que somos diferentes; não nos confere identidade, mas a dissolve em benefício do outro em que nos transformamos.
Uma das maneiras de punir os ex-cêntricos – os loucos, os criminosos, os irremediáveis – é escondê-los em cavernas de ferro e cimento, em casarões de abandono. Todos esses impertinentes ao sistema são exilados e viverão uma não-vida, ou uma vida sem qualidades. Eis a temática de O pavilhão dos loucos amores, de Pio Furtado, que ora chega aos leitores e críticos.
O autor, Pio Furtado, não é novato na literatura, a qual cultiva ao lado de sua atuante profissão de médico. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores – ABRAMES-RJ, possui um bom repertório de romances publicados, os quais obtêm excelente ressonância entre os leitores, haja vista de que vários estão além da primeira edição.
Quando lemos o “pavilhão” do título, a conotação é imediata: lembramos prioritariamente das edificações, em geral especializadas, que existem nas administrações hospitalares. Aqui, no caso, trata-se do pavilhão de um Hospício que abriga alienados mentais. Instituição à antiga, das tantas que existiram em nosso país no século passado, e isso a partir do nome, “hospício”, e por seus métodos, que incluem o uso do eletrochoque e da camisa de força.
A narrativa inicia-se com a admissão de Dárcia Loreno, psicóloga recém-formada, ao quadro de funcionários do Hospício São José de Cupertino. Dárcia veio para trazer desconforto aos doentes já conformados. Cheia de ideias, acreditava no poder das mudanças. Primeiramente, fez pintar uma floresta de muitos verdes nos muros internos do manicômio e plantar algumas árvores e flores verdadeiras no pátio. A primavera trouxe pássaros e borboletas para o jardim. Depois, fez introduzir exercícios físicos, música, oficinas de arte e até promoveu piquenique num dos parques da cidade. O verde, a música, os exercícios e a arte fizeram muito bem aos internos. O piquenique, porém, foi um desastre e mostrou todo o desprezo que a sociedade organizada tem pelo estranho, pelo diferente. Mas Dárcia desempenhava bem seu trabalho, em tudo apoiada pelo velho psiquiatra Dr. Sicardo Dantunes.
O trabalho dos dois – psiquiatra e psicóloga – era cheio de perguntas cruciais e até então represadas: seriam os loucos felizes? Existirá algum prazer muito secreto em sentir-se louco? Ou as dores e os remorsos proibiam que eles se abrissem para a terapia e para uma outra espécie de vida, um intermundo entre a sanidade e a loucura? Difícil conhecer além da superfície, pois, como diz o narrador: “[...] uma pedra não escova os dentes, nem come, nem evacua, [...] um vegetal, pelas grossas raízes, não sai do lugar, e não conversa, e não se veste, [...] animal não pede licença, não espera pela comida e não é dado a cerimônias.
Seria essa nova vida, idealizada, melhor do que a que vivem? Era boa, mesmo, a vida dos sãos? Qual seria a verdade da psicologia, uma vez que, nas palavras do Dr. Dantunes, os tidos como normais, ou os que se sentem ou se acham normais, são prisioneiros das suas ânsias, das suas cobiças, das competições, das invejas, das ambições e crueldades: as vidas da maioria dos homens ardem no inferno destas condições, queimam nestas fogueiras de tantas lenhas [...].
O passar do tempo costurava as ideias em provisórios conceitos. A jovem despertava, no idoso, espasmos de antigos ideais; ele, além do apoio contra as impertinências do Diretor Geral, funcionava como um garante do acerto das novidades trazidas por Dárcia, conhecedor antigo de todos os pacientes atuais e de outros tantos que já se tinham ido, atrás da morte. Ele era solidez e segurança; ela, vento e revolução.
Uma peça do destino faz com que Dárcia perca a presença sempre confortante e segura do Dr. Dantunes; de repente está sozinha para entender e decidir sobre os pacientes do manicômio. Sente-se perdida, muito jovem, sente-se criança, tem cada vez menos forças. Consomem-na terríveis lembranças infantis que desconhecia. Não dorme mais.
No entanto, sabe, não pode abandonar o trabalho que iniciou. Muitos confiam nela, dependem dela, necessitam. Dárcia também vive um sofrimento pessoal, muito doloroso, mas que não pode impor aos seus frágeis protegidos. E, sem saída, cumpre sozinha a imersão no mundo da loucura, responsável que é por todas aquelas almas. O tocante final será uma resposta às angústias do leitor e, por outro lado, traz outras, que implicam o conhecimento de nosso ser-no-mundo heideggeriano e repõe a discussão insolúvel sobre quem, na verdade, é o timoneiro da nau dos loucos.
Escrito com uma linguagem objetiva, com uma trama cheia de episódios, tudo isso evocando os grandes romances realistas, especialmente os russos e franceses, Pio Furtado consolida sua carreira literária e segue fiel a si próprio – esta última, a grande virtude de quem escreve ficção –, dando a seus tantos leitores mais uma amostra de sua vocação romanesca.
TODOS TÊM SUA HISTÓRIA PARA CONTAR
Luiz Antonio de Assis Brasil
Há um cão dentro de mim a roer os ossos
De todos meus pecados e remorsos
Prado Veppo, “O cão”
Há um cão dentro de mim a roer os ossos
De todos meus pecados e remorsos
Prado Veppo, “O cão”
As regras de convívio de uma sociedade são dadas por uma elite central pensante – portanto, dominante – e se espraiam até os muros que a cercam. Tal modelo político expande-se no espaço, do mesmo modo que os círculos produzidos pela pedra jogada num lago. Os círculos só se detêm nas margens. E, no caminho, vão sendo deformados, submetidos a relações de poder que são replicadas, transformadas e pervertidas. Para os homens “típicos”, ou “integrados”, as margens são contidas por muros altos, que esses homens veem como intransponíveis, porque, se de um lado os aprisionam, de outro significam a materialização de uma zona de conforto.
Indivíduos há que ultrapassam esses limites, esses muros pontiagudos, porque, para eles, a sociedade organizada não serve. Então contestam-na, mas logo presos e vigiados, são jogados ao mar na frágil barca dos loucos, uma entidade que habitava o imaginário medieval, depois utilizada como alegoria no célebre romance Ship of Fools, de Catherine Anne Porter. Os passageiros dessa nau mítica são os que Linda Hutcheon chama de ex-cêntricos, seres que não estão no centro da sociedade, mas, sim, à sua periferia. A humanidade raramente se indaga se essa barca não seria, em verdade, a única capaz de explicar criticamente a corrosão das normas e valores em nome dos quais foram punidos. Segundo Foucault, a história nos cerca e dá limites; paradoxalmente, não nos explica a nós mesmos, mas diz no que somos diferentes; não nos confere identidade, mas a dissolve em benefício do outro em que nos transformamos.
Uma das maneiras de punir os ex-cêntricos – os loucos, os criminosos, os irremediáveis – é escondê-los em cavernas de ferro e cimento, em casarões de abandono. Todos esses impertinentes ao sistema são exilados e viverão uma não-vida, ou uma vida sem qualidades. Eis a temática de O pavilhão dos loucos amores, de Pio Furtado, que ora chega aos leitores e críticos.
O autor, Pio Furtado, não é novato na literatura, a qual cultiva ao lado de sua atuante profissão de médico. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores – ABRAMES-RJ, possui um bom repertório de romances publicados, os quais obtêm excelente ressonância entre os leitores, haja vista de que vários estão além da primeira edição.
Quando lemos o “pavilhão” do título, a conotação é imediata: lembramos prioritariamente das edificações, em geral especializadas, que existem nas administrações hospitalares. Aqui, no caso, trata-se do pavilhão de um Hospício que abriga alienados mentais. Instituição à antiga, das tantas que existiram em nosso país no século passado, e isso a partir do nome, “hospício”, e por seus métodos, que incluem o uso do eletrochoque e da camisa de força.
A narrativa inicia-se com a admissão de Dárcia Loreno, psicóloga recém-formada, ao quadro de funcionários do Hospício São José de Cupertino. Dárcia veio para trazer desconforto aos doentes já conformados. Cheia de ideias, acreditava no poder das mudanças. Primeiramente, fez pintar uma floresta de muitos verdes nos muros internos do manicômio e plantar algumas árvores e flores verdadeiras no pátio. A primavera trouxe pássaros e borboletas para o jardim. Depois, fez introduzir exercícios físicos, música, oficinas de arte e até promoveu piquenique num dos parques da cidade. O verde, a música, os exercícios e a arte fizeram muito bem aos internos. O piquenique, porém, foi um desastre e mostrou todo o desprezo que a sociedade organizada tem pelo estranho, pelo diferente. Mas Dárcia desempenhava bem seu trabalho, em tudo apoiada pelo velho psiquiatra Dr. Sicardo Dantunes.
O trabalho dos dois – psiquiatra e psicóloga – era cheio de perguntas cruciais e até então represadas: seriam os loucos felizes? Existirá algum prazer muito secreto em sentir-se louco? Ou as dores e os remorsos proibiam que eles se abrissem para a terapia e para uma outra espécie de vida, um intermundo entre a sanidade e a loucura? Difícil conhecer além da superfície, pois, como diz o narrador: “[...] uma pedra não escova os dentes, nem come, nem evacua, [...] um vegetal, pelas grossas raízes, não sai do lugar, e não conversa, e não se veste, [...] animal não pede licença, não espera pela comida e não é dado a cerimônias.
Seria essa nova vida, idealizada, melhor do que a que vivem? Era boa, mesmo, a vida dos sãos? Qual seria a verdade da psicologia, uma vez que, nas palavras do Dr. Dantunes, os tidos como normais, ou os que se sentem ou se acham normais, são prisioneiros das suas ânsias, das suas cobiças, das competições, das invejas, das ambições e crueldades: as vidas da maioria dos homens ardem no inferno destas condições, queimam nestas fogueiras de tantas lenhas [...].
O passar do tempo costurava as ideias em provisórios conceitos. A jovem despertava, no idoso, espasmos de antigos ideais; ele, além do apoio contra as impertinências do Diretor Geral, funcionava como um garante do acerto das novidades trazidas por Dárcia, conhecedor antigo de todos os pacientes atuais e de outros tantos que já se tinham ido, atrás da morte. Ele era solidez e segurança; ela, vento e revolução.
Uma peça do destino faz com que Dárcia perca a presença sempre confortante e segura do Dr. Dantunes; de repente está sozinha para entender e decidir sobre os pacientes do manicômio. Sente-se perdida, muito jovem, sente-se criança, tem cada vez menos forças. Consomem-na terríveis lembranças infantis que desconhecia. Não dorme mais.
No entanto, sabe, não pode abandonar o trabalho que iniciou. Muitos confiam nela, dependem dela, necessitam. Dárcia também vive um sofrimento pessoal, muito doloroso, mas que não pode impor aos seus frágeis protegidos. E, sem saída, cumpre sozinha a imersão no mundo da loucura, responsável que é por todas aquelas almas. O tocante final será uma resposta às angústias do leitor e, por outro lado, traz outras, que implicam o conhecimento de nosso ser-no-mundo heideggeriano e repõe a discussão insolúvel sobre quem, na verdade, é o timoneiro da nau dos loucos.
Escrito com uma linguagem objetiva, com uma trama cheia de episódios, tudo isso evocando os grandes romances realistas, especialmente os russos e franceses, Pio Furtado consolida sua carreira literária e segue fiel a si próprio – esta última, a grande virtude de quem escreve ficção –, dando a seus tantos leitores mais uma amostra de sua vocação romanesca.