"A peste" de Albert Camus

Por meio de uma literatura filosófica pautada em questionamentos acerca da condição humana, da solidariedade e da liberdade, Albert Camus, em seu “A Peste”, nos insere na cidade argelina de Oran, que será tomada pela peste no decorrer da narrativa. Dividida em quatro partes, a narrativa breve, construída com alguns elementos dignos de uma crônica, vez que possui o objetivo de retratar alguns aspectos cotidianos da vida dos indivíduos, apesar de parecer simples, é repleta de simbologias que podem passar despercebidas em uma primeira leitura.

A história desenvolvida por Camus é estabelecida com um paralelo, de como eram as pessoas e seus comportamentos antes e depois do “flagelo” acometer toda a cidade. Podemos comparar esse estilo de narrativa ao romance “O senhor das Moscas” do escritor inglês William Golding, que, assim como Camus, foi ganhador do Nobel de Literatura. Em “O senhor das Moscas” somos apresentados a crianças que modificam seu comportamento em razão de estarem presas em uma ilha, totalmente afastadas de qualquer amarra social e, no romance objeto desta análise, somos apresentados a adultos que modificam seu comportamento em razão de estarem presos em uma cidade pestilenta, totalmente afastados de qualquer pensamento feliz sobre o futuro que os espera. Todavia, enquanto em ‘O senhor das moscas” o leitor observa estupefato as características mais vis do ser humano se desenvolverem em crianças devido às condições em que estas se encontram, em “A peste”, observamos como uma doença é capaz de transformar as pessoas, que despertam, por meio da tragédia, seu lado mais humano, mais consciente acerca das coisas que acontecem ao seu redor e principalmente, mais solidário (como se pode verificar nas ações do Juiz Othon e do jornalista Rambert). Portanto, embora ambas as obras reflitam sobre o mesmo ponto, apesar das primeiras impressões conflitantes (uma ilha repleta de crianças de um lado e indivíduos presos pela peste em uma cidade, de outro), Camus faz uma análise mais positivista da natureza humana.

Deixando de lado o paralelo supracitado, a história se inicia quando Oran é invadida por inúmeros ratos que agonizam até a morte. Nota-se, a princípio, que a partir deste momento, a história já caminha para uma situação de tragédia, ante ao clima de profundo incômodo que passa a figurar no livro, com um morador prevendo que algo de ruim como um terremoto está por vir e outros lamentando profundamente a presença de ratos em determinados locais, como no corredor de um edifício residencial. Neste contexto, somos apresentados aos poucos aos personagens de Camus, sendo estes, dentre os principais: um dos médicos da cidade, que mais tarde descobrimos ser o narrador da história, Dr. Bernard Rieux; Grand, um homem que tem dificuldades de se expressar e está no processo de escrever um livro; Cottard, um homem que parece gostar da peste e Rambert, um jovem jornalista que se vê privado da liberdade em uma cidade pestilenta e afastado à força da mulher amada. Logo, os portões da cidade serão fechados, sendo as pessoas em quarentena comparadas a prisioneiros.

Por fim, no desenrolar da história, é mostrado o que ocorre com os cidadãos de Oran mediante o afastamento das pessoas que se amam, o enfrentamento dado pelas pessoas à doença, o tratamento conferido pelos religiosos à questão (padre Paneloux) e a importância conferida pelas pessoas à religião em momentos de tragédia. Observa-se ainda o desenvolvimento frenético da peste e seus efeitos e por fim, o completo desaparecimento da doença, tal como havia começado (embora Rieux afirme que a peste não desaparece nunca, ficando adormecida para depois retornar para desgraça e ensinamento dos homens).

Importante ressaltar ainda que ler a obra de Camus, publicada em 1947, no contexto atual, no auge da pandemia de coronavírus, é como encontrar um espelho que reflete perfeitamente nossos anseios e inseguranças quanto ao futuro, vez que o leitor de hoje consegue ver a si mesmo como se fosse um personagem do livro. Assim, torna-se especialmente difícil a leitura de certas passagens do livro como a que o Dr. Rieux assevera que os membros das famílias dos doentes relutam em comunicar a situação às autoridades, vez que temem nunca mais encontrar o enfermo com vida, situação muito semelhante a que ocorre em 2020, em que muitas famílias restam impossibilitadas de dar adeus aos seus mortos. Todavia, é possível também que a visão do leitor atual possa se modificar em relação a outros momentos da narrativa. Enquanto a vontade do jornalista Rambert de deixar a cidade de qualquer forma pudesse ser vista, por um leitor de outrora, como uma forma egoísta de lidar com toda a situação, vez que ignorava totalmente as recomendações das autoridades de saúde, podendo culminar na proliferação da doença para outras cidades, o leitor que se encontra privado da sua liberdade devido a pandemia de coronavírus, pode compreender perfeitamente a vontade quase enlouquecedora de quem está preso nessas condições de se livrar totalmente da situação, sendo o sentimento de fuga ou escape bastante recorrente. O mesmo se aplica quanto ao pedido impensado e negligente daqueles que estavam presos em Oran, para que seus entes queridos, que se encontravam afastados da cidade, se unissem a eles na quarentena. Se tal ato desesperado poderia facilmente ser visto na atualidade, em que se conta com a tecnologia e a facilidade de comunicação, no contexto da década de 40, em que os personagens se comunicavam por meio de telegramas curtos, mantendo-se totalmente afastados das pessoas que amavam, tal atitude torna-se perfeitamente compreensível.

Em conclusão, outro ponto que merece análise diz respeito ao sentimento negativista da sociedade com relação à gravidade da doença, que pode ser observado tanto no contexto atual quanto na obra literária objeto de estudo. Ocupados com suas atividades rotineiras, os moradores de Oran parecem acreditar que a morte se trata de simples abstração, como se verifica da seguinte passagem do texto “ O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções”. Ainda, dispõe o narrador que os moradores de Oran sentiam-se livres “Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos”.

Como dito anteriormente, esta obra, considerada uma crítica ao nazismo, está repleta de simbologias e a primeira delas é justamente a figura dos ratos, que podem aqui significar a figura do absurdo, da morte. Interessante observar que mesmo diante da descoberta de uma quantidade expressiva de ratos mortos pela cidade e apesar do clima de angústia e inquietação que é transmitido ao leitor, os cidadãos de Oran não parecem dar à doença a importância que lhe é devida, permanecendo quase que totalmente alheios à situação que os aflige. Assim, apesar de a verossimilhança do comportamento humano manifestado pelos personagens de a peste, pareça ser inexistente, é com aflição que percebemos que este cenário se repete na vida real, em que pessoas, em diversas cidades do Brasil, realizam atos pedindo para que cesse o isolamento social, voltando as pessoas às suas atividades corriqueiras, como se o vírus que castiga o mundo todo, fosse irreal. Dessa forma, ante o exposto, pode-se afirmar que a leitura desta obra é vital, no cenário em que vivemos, para que seja possível escapar da estupidez da natureza humana que se manifesta mesmo diante de uma tragédia com características muito mais avassaladoras do que a retratada no livro. Ainda, faz-se necessário que busquemos em “A peste” a inspiração e a esperança necessárias para que possamos superar este momento, que entrará para a história da humanidade.

Andréia Miranda
Enviado por Andréia Miranda em 18/05/2020
Reeditado em 19/05/2020
Código do texto: T6950892
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