Quando o Quixote recrutou o Sancho Pança
Quando o Quixote recrutou o Sancho Pança
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Há no Dom Quixote uma pergunta que inquieta o leitor: quem seria mais insano, o cavaleiro da triste figura ou seu escudeiro? Nessa pergunta, quem é mais louco, ou menos insano, o Quixote ou o Sancho, está contido problema que nos afeta, relativo à nossa sanidade mental. Pode ser essa a clave indagativa que tenha garantido a sobrevivência do livro e das questões universais que propõe, ou que supomos propor. É o que garante ao livro de Cervantes uma dimensão quase mitológica aos olhos de vários gerações e leitores que alcança.
O substantivo comum “escudeiro”, por força de um lugar comum literário, parece sempre anteposto pelo adjetivo “fiel”. Tem-se a impressão de que não haveria um escudeiro infiel, e que toda manifestação de fidelidade seja mesmo um predicado de escudeiros. O núcleo desse paradigma literário poderia estar contido na relação de complementariedade entre o Quixote e seu escudeiro (fiel), o Sancho Pança. Há por parte de Cervantes um tratamento dramático e profundo de duas personalidades cômicas, que respeitamos, e nas quais nos vemos.
Há ainda nesse padrão uma relação dominador-dominado, que no início do célebre “Manifesto” Marx identificava nas categorias de homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, opressor e oprimido, em constante oposição. Entre o Quixote e Sancho, no entanto, o cotidiano resiste a essa tipologia tradicional. Tem-se a impressão de que se complementam, inclusive esteticamente. O Quixote era magro e alto (compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto, nos diz Cervantes). O Sancho era roliço e baixo, é o que imaginamos ao longo das várias cenas, e é o que confirmamos com o ilustrador clássico do Quixote, Gustave Doré (1832-1883), pintor, desenhista e ilustrador francês que também complementa nossa imaginação com passagens da Divina Comédia (Dante) e do Paraíso Perdido (Milton). Há no Quixote e no Sancho uma identificação com mitos visuais. Um crítico, Ian Ward, afirmou que “se nos fosse dado ver um cajado e uma bola andando emparelhados por uma estrada, imediatamente os reconheceríamos como Dom Quixote e Sancho Pança”.
Quem dos dois era são? Ou menos são? Quixote ou Sancho? Há dúvidas também sobre a sanidade e o equilíbrio de Sancho. Sigmund Freud, em nota de rodapé na “Psicopatologia da Vida Cotidiana” considerou injusta, ainda que engenhosa, uma sentença que Sancho proferiu quando governador da ilha, a respeito de uma mulher que se dizia violentada. Cervantes nem sempre sublinha uma racionalidade absoluta em Sancho, como faria supor uma simplista noção de que Quixote e Sancho seriam opostos simplesmente porque à desrazão do primeiro poderia se opor a sanidade mental desse último.
Cervantes apresenta Sancho em apenas um parágrafo. É econômico nas palavras, seco, direto. Não se demora na apresentação, não perde tempo e tinta e fantasia na identificação física do personagem. Ao longo das aventuras o laconismo de Cervantes cede à imaginação do leitor, que compõe o Sancho na medida em que o escudeiro se revela um caráter também central na narrativa. O Quixote é apresentado em pormenor, e se dissolve ao longo da história, até a redenção final, que ocorre na cena última, quando elabora o testamento. Sancho, pelo contrário, surge mínimo, irrelevante, transcendendo seu espaço inicial até a cena final, quando constamos sua grandeza moral e entendemos o que significa fidelidade. Sancho é fiel.
Sancho, no entanto, foi seduzido por uma promessa. Quixote lhe prometeu uma ilha, da qual seria governador. Quixote promete uma ilha a Sancho, do mesmo modo que seu herói e mentor cavaleiro, Amadis de Gaula, prometera uma ilha para seu ajudante. Uma ilha em recompensa a serviços prestados. Sancho era um lavrador, “pouco sal na moleira”, o que significa que tinha pouco juízo, constatação que não se confirmaria. Tem-se a impressão de que Sancho era ajuizado, no que contrastava e, ao mesmo tempo, complementava o Quixote. Sancho era pobre, casado, tinha filhos. Referia-se a sua mulher, Juana Gutiérrez, como sua “costela”, uma alusão ao livro de Gênesis. A esposa de Sancho aparece ao longo da narrativa com vários nomes. É Juana Gutiérrez, Maria Gutiérrez, Teresa Pança e Teresa Cascajo.
Sancho começa a fazer parte da narrativa no capítulo subsequente ao capítulo da queima dos livros. Nessa passagem, o Quixote levanta-se da cama e fala desatinos, como se estivesse ainda sonhando ou, “tão desperto como se nunca tivesse dormido”. Segundo Unamuno, o Quixote até nos sonhos quixoteava. À força, foi pelo padre e pelo barbeiro reconduzido ao leito. Pediu comida. Alimentou-se. Caiu novamente no sono. O padre e os demais de algum modo se admiravam de sua loucura. Durante a noite, a ama havia queimado os livros que sobraram. Não houve tempo para um escrutínio mais ponderado, em relação à periculosidade dos livros. Desse modo, todos os volumes seguiram pela fogueira. Cervantes acrescenta ditado dando conta de que “às vezes o injusto paga pelo pecador”, aludindo ao fato de que muitos livros teriam sido desnecessariamente sacrificados.
A ama, a sobrinha, o padre e o barbeiro perceberam então um problema. Como explicariam ao Quixote o desaparecimento dos livros que tanto gostava? O que diriam quando acordasse e demandasse pelos tomos? Simples. Muraram o aposento no qual estavam os livros e explicaram que um encantador os levou. De fato, Quixote acordou, procurou pelos livros, não os encontrou, perguntou o que teria ocorrido. Aceitou a explicação, acrescentando que os livros foram levados por um tal Frestão, um sábio encantador que era um inimigo que tinha.
Não adianta a verdade para quem não aceita a verdade, ou para quem já possui uma verdade, que não admite contestada. Na opinião de Ian Ward (Mitos do individualismo moderno) as diferenças entre Dom Quixote e o mundo externo eram imutáveis e carentes de mediação; não havia uma solução dialética para seu conflito com a realidade. Melhor tomar sua realidade sonhada como uma realidade objetiva. A sobrinha pede que o tio fique em casa. Não adianta. O cólera fervia e o Quixote queria aventuras. Fazer o quê?
Cervantes colocou na cena da mentira sobre o destino dos livros um tema recorrente na história da cultura, pertinente a uma relatividade (ou não) da verdade. O assunto também é bíblico. Em João (18:36, 37), o acusado (Jesus) respondeu ao juiz (Pilatos) que viera ao mundo dar o testemunho da verdade, e que todo aquele que era da verdade ouvia a sua voz, ao que Pilatos contestou: que é a verdade? Quase dois mil anos depois um filósofo alemão (Kant) afirmava que a verdade é direito apenas de quem direito à verdade. Pode-se ocultar a verdade em favor de uma causa justa?
O Quixote precisava de um escudeiro. Chamou o vizinho lavrador. Aparece Sancho. Em troca da recompensa em forma de ilha, concorda em acompanhar o Quixote, exigindo, no entanto, levar seu asno. Não era acostumado a caminhadas. O pedido perturba Quixote, que não se recorda de precedente nas histórias que leu. Deveria decidir sem bases seguras, com força de um precedente vinculante. Agita-se. Assume a responsabilidade histórica de decidir uma questão da cavalaria sem contar com precedente segura. Autoriza.
Partem pela noite. Sancho não se despediu da mulher e da prole. O Quixote, de igual modo, não se despediu da ama e da sobrinha. Sancho tinha pressa. Queria a ilha, sonhava em ser governador. Ingênuo, e pouco prático, tinha dúvidas se titularia a esposa como governadora, ou como condessa, expressão que era de algum modo mais eufônica, penso eu. Por que partiram pela noite? Ian Ward acredita que o Quixote talvez temesse ser impedido de sair ou levado imediatamente de volta para casa.
De um ponto de vista mais romântico pode-se afirmar (com Unamuno) que Quixote precisava de Sancho (para quem pensava em voz alta) para ouvir a si mesmo. Sancho é a humanidade, o mundo todo, com quem o Quixote precisa se comunicar. É um auditório universal. E todos nós precisamos de quem nos ouça.