"Fazenda modelo" de Chico Buarque: quando "gado" éramos todos nós e não apenas os alienados e fanáticos
Livro “Fazenda modelo”, estreia literária do escritor e compositor carioca Chico Buarque, publicado originalmente no ano de 1974. Na época, o autor precisou se afastar durante alguns meses seus trabalhos musicais para, então, se dedicar à gestão do livro.
Na obra, uma “novela pecuária”, em sua própria definição, Chico Buarque nos apresenta o cotidiano da Fazenda Modelo, com seus bois e vacas (especialmente o casal bovino Abá e Aurora, além do boi administrador Juvenal) que ali vivem e, por meio do grotesco e alegórico, o autor analisa o clima político e a vida durante aqueles anos da década de 1970.
AS BASES PARA O SURGIMENTO DO PRIMEIRO TIPO DE GADO
Nessa época da escrita, o Brasil vivia sob o julgo ferrenho da Ditadura Militar. Havia o temor constante da censura, que se acirrou após 1968 e, num contexto mais amplo, o país vivia o chamado “milagre econômico”, um verdadeiro embuste ufanista.
O “milagre econômico” foi um período no qual a economia cresceu substancialmente, por meio da entrada grande de capital estrangeiro e endividamento externo por parte do Estado. Foram feitos grandes investimentos na construção de rodovias, portos e obras faraônicas. Porém, embora os indicadores econômicos estivessem em alta, isso não se traduziu em desenvolvimento social. Pelo contrário: o abismo entre pobres e ricos aumentou durante o período e durante a Ditadura como um todo. As camadas marginalizadas e carentes de nosso país não colhiam, diretamente, o fruto desse suposto desenvolvimento. Quem se deu bem foram as grandes construtoras que tocavam as obras, bem como grandes empresários ligados aos setores de siderurgia, metalurgia, mineração, etc. que, por meio de parcerias nebulosas com o Governo Federal, conseguiram contratos vantajosos. Foi também um período de forte desmatamento e crimes ambientais, favorecendo igualmente grandes proprietários de terra que apoiavam os militares. Isso tudo com o sistema bancário financiando as relações, enriquecendo banqueiros.
A população (a massa, o povo), tal qual o gado, assistia passiva tudo, participando das engrenagens da fazenda (a economia do país), mas sem colher os frutos de seu suor (o abismo social se intensificou).
Foi durante a Ditadura Militar, portanto, que se consolidou estruturas corruptas que, somente na década de 2010, começaram a render algum tipo de punição, ainda que de forma atabalhoada e parcial, privilegiando alguns setores do país (os bancos e o agronegócio, por exemplo) e negligenciando outros (como a construção civil, que praticamente faliu).
AS BASES PARA O SURGIMENTO DO SEGUNDO TIPO DE GADO
O jogo político sempre favoreceu camadas influentes da sociedade, um poderio que foi se consolidando principalmente no Governo Militar e nos aos seguintes à redemocratização. Me refiro, é claro, à minoria rica da população brasileira, constituída por: grandes empresários e agricultores, famílias que comandam a imprensa de massa e setores-chave da produção e da política, bem como os militares, os juízes e os banqueiros.
Os governos federais petistas, com origem no trabalhador, ou seja, no povo, se converteram numa esperança para o fim de um ciclo interminável de exploração da população. Porém, na prática, para ter um grau mínimo de governabilidade, o PT se aliou ao que havia de mais corrupto na política brasileira e o enfrentamento às estruturas corruptas, consolidadas na Ditadura e mantidas na redemocratização, ficou em segundo plano. Houve sim grande investimento em políticas públicas que permitiram reduzir bastante a desigualdade social (o Prouni e o Bolsa Família atestam isso) e o contexto externo favorável, com parcerias interessantes com a China, Mercosul e Oriente Médio, por exemplo, permitiram um período de forte crescimento econômico. Tudo isso foi possível devido a uma convivência pacífica do Governo Federal com o mercado financeiro, no qual a minoria rica, de fato, consolida suas fortunas. Essa convivência é possível com o Governo comprometendo mais de 40% de seu orçamento anual com o pagamento de uma dívida pública que só favorece o mercado financeiro, no qual as elites do país aplicam seus negócios.
Nas Jornadas de Junho de 2013, as camadas mais desfavorecidas da sociedade foram às ruas para gritarem pedindo para participarem do jogo político, cobrando melhores investimentos no que de fato era relevante, criticando investimentos em eventos “não-essenciais” (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas do Rio de 2016), criticando a corrupção do Governo (algo que boa parte daqueles manifestantes não esperava do PT). O Governo petista não entendeu a voz das ruas e se desgastou, principalmente devido a uma mudança no ambiente externo, com a economia recuando. A não-aceitação do resultado das eleições de 2014, por parte do candidato Aécio Neves (PSDB), posteriormente envolvido em corrupção, levou o país a uma crise política e econômica, com todos os elementos citados como combustível, que se estendeu pelos anos seguintes.
A criação do instrumento da delação premiada e a independência do Ministério Público e da Polícia Federal, pelos governos petistas, permitiu a criação/consolidação de operações como a Lava Jato que, com o passar do tempo, se converteu em um projeto de poder político (quase um partido marginal), que se voltou contra o próprio governo petista, com fortes indícios de crime de lawfare, como nos casos do impeachment da então presidente Dilma Rousseff e da prisão controversa do ex-presidente Lula. O juiz que conduzia as investigações da Lava Jato, Sérgio Moro, atuou em parceria com o Ministério Público Federal (a acusação), deturpando o processo jurídico, agravando a crise política no Brasil por meio de manobras como vazamentos de conversas entre Dilma e Lula perto de processos eleitorais, conduções coercitivas e prisões usadas como circo midiático, bem como condenações estranhas, utilizando-se delações e indícios como prova condenatória. Soma-se a isso a conivência jurídica de várias estâncias jurídicas e o apoio de uma imprensa que abriu mão do jornalismo e temos um lawfare consolidado, e que conhecemos graças ao vazamento de conversas entre Moro e o MPF por parte do Intercept Brasil, estes sim fazendo jornalismo.
Essas citadas políticas anticorrupção criadas/fortalecidas pelo PT, o desgaste do Governo com a corrupção, bem como a crise política e econômica, criaram um forte sentimento de “antipetismo” no Brasil. Esse sentimento de intolerância pavimentou a criação de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) que apoiaram a candidatura e posterior eleição de Jair Bolsonaro, mesmo sendo um político com desempenho pífio e denúncias de enriquecimento ilícito e envolvimento com milícias em seu currículo. Vale citar que o citado Sérgio Moro foi nomeado Ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, após ele ter condenado Lula e retirado ele da disputa presidencial de 2018, quando liderava todas as pesquisas.
O antipetismo alimentou um fanatismo ultraconservador numa parcela considerável da população, majoritariamente branca, com discurso pró-ditadura militar e de favorecimento da minoria privilegiada do Brasil. Tal parcela da população, reacionária, estúpida, antidemocrática e ultraconservadora, que se informa e interage basicamente através de aplicativos de mensagens (WhatsApp / Telegram), acredita, em sua maioria, em teorias da conspiração (globalismo, marxismo cultural, terraplanismo, etc.) com origem em Olavo de Carvalho e são, na atualidade, os maiores divulgadores de fake News e conteúdo de ódio na internet.
Essa parcela alienada e fanática da população apoia Jair Bolsonaro e suas ações irresponsáveis e criminosas na presidência da república. Isso os levou a serem apelidados, na internet, de “gado”, devido à forma apática com que ignoram as maluquices do governo, servindo de forma passiva aos interesses de uma classe dominante rica e que é a minoria do país.
A DIFERENÇA ENTRE OS DOIS TIPOS DE GADO
Na Ditadura Militar, o gado representa o povo brasileiro, em sua maioria. Vivendo na grande fazenda do Brasil, o povo fornece o leite e, no caso do touro Abá, o sémen para reprodução, gerando lucro para os administradores da fazenda (o Governo), recebendo muito pouco em troca. Confinados entre cercas (a falta da liberdade da Ditadura), quando cometem erros, são severamente punidos (as torturas da Ditadura). Por vezes, pagam com a própria carne, ou seja, com a própria vida (centenas foram mortos durante a Ditadura). O objetivo era sobreviver, em meio às dificuldades da vida agrária (o cotidiano) e os abusos do boi Juvenal, que administra a fazenda, e cia (a Ditadura com seus castigos).
Interessante observar a figura do boi Juvenal, que se autodeclara senhor da fazenda por meio de um ato, uma clara alusão à Ditadura Militar, que se autodeclara governante do Brasil e se utiliza de atos institucionais criminosos para firmar sua autoridade.
Juvenal passa a implementar técnicas de industrialização copiadas de outras fazendas (há um mapa da Fazenda Modelo e arredores no livro). Novamente uma clara referência ao processo de industrialização que o país viveu durante o “milagre econômico”, possibilitado pela entrada massiva de dinheiro estrangeiro, que enriqueceu os proprietários, ou seja, os administradores da fazenda, sem que o gado usufruísse dessa riqueza.
Há referências à tortura e outras formas de controle por parte de Juvenal como, por exemplo, a criação de uma “tela mágica”, uma metáfora para a televisão com seus pronunciamentos político e que, durante a Ditadura, serviu de apoio ao regime como, por exemplo, a Rede Globo, que fazia vista grossa aos crimes cometidos no período.
Por sua vez, o gado contemporâneo, pós 2014, citado anteriormente, não representa a população como um todo, mas apenas uma parcela, fanatizada e alienada pelo discurso de uma minoria, uma elite, que chegou ao poder surfando no antipetismo e se aproveitando de práticas criminosas para manter o controle sobre a manada. Portanto, pode-se afirmar que, ao contrário do gado mostrado por Chico Buarque, cuja alienação foi imposta, no gado atual a alienação é uma escolha voluntária. Parte do gado da atualidade escolheu se alienar e, a outra parte, é ligada à administração da fazenda, ou seja, pertence à mesma classe social dominante, que usufrui do suor da maior parte da população. O gado atual vive numa bolha, numa realidade alternativa.
PARALELO COM ORWELL E CONCLUSÃO
“Fazenda modelo” é uma alegoria muito interessante para entender aquele contexto político em que a população se viu obrigada a conviver com uma Ditadura ferrenha. Chico Buarque, em sua estreia, opta por um relato mais alegórico como forma de mostrar a realidade, mas será que a população (o gado) era capaz de entender tais metáforas? Questiono isso tendo em vista um comparativo com o escritor britânico George Orwell.
Há quem estabeleça paralelos entre esse livro e a obra “A revolução dos bichos” do citado Orwell. Afinal, temos fábulas em ambas as obras, com animais como protagonistas. Porém, na obra de Orwell, a mensagem, a moral, por assim dizer, é bem clara no final, após um relato linear de desenvolvimento dos protagonistas. É compreensível para a maioria que, após a leitura, facilmente entende a crítica ao totalitarismo. Isso, naturalmente, é uma percepção minha, baseado no que já li e escutei de opiniões sobre esse livro de Orwell.
Por sua vez, na obra de Chico Buarque, o relato foge um pouco da linearidade, com vozes narrativas variando e com uma mensagem muito presa às entrelinhas. É compreensível que, diante de uma censura ferrenha, com torturas e assassinatos sendo cometidos, Chico Buarque tenha buscado nas entrelinhas uma forma de dar o seu recado. É nobre a coragem, mas tenho lá minhas dúvidas se as pessoas exploradas da época conseguiram ter acesso à toda a riqueza metafórica da obra, até mesmo porque o gado da época era bombardeado, a todo instante, por propagandas pró-Fazenda e, a própria censura, impedia a população de ter acesso a livros que criticassem abertamente o regime. Nesse ponto, a obra musical de Chico Buarque talvez tenha conseguido burlar melhor esses impedimentos, colocados pela Ditadura Militar que alienava e maltratava o povo. Novamente, uma percepção minha.
É interessante observar como que Chico Buarque enxergou e criticou o embuste que foi o “milagre econômico”, algo que, mesmo com o distanciamento histórico e todo o acervo robusto de obras sobre os anos de chumbo, ainda existam na atualidade pessoas que não enxerguem o óbvio. Pessoas que, infelizmente, acabam elegendo e defendendo juvenais opressores.
“Fazenda modelo”, embora não seja a obra-prima de Chico Buarque, é um livro ótimo que já mostrava o potencial do artista como escritor, algo que certamente foi desenvolvido nas obras seguintes, que lhe renderam os mais merecidos prêmios. Devido aos muros impostos pelo regime, a obra não teve, talvez, o alcance merecido, mas é inegável sua capacidade de insinuar, ainda que nas entrelinhas, a exploração imposta ao gado.
A maior parte da população do Brasil ainda constitui o gado que Chico Buarque procurou alertar. E esse alerta só será escutado na medida em que a manada tomar ciência de quem realmente lucra com a fazenda.
E existe uma pequena parcela da população, um outro tipo de gado, que escolheu se alienar e que é uma vergonha para toda a classe animal. É uma vergonha no sentido de não apenas defender quem oprime os animais da fazenda, mas no sentido de também sentir prazer nas punições impostas pelo cabresto e outros instrumentos. É masoquismo doentio.
A leitura de “Fazenda modelo”, de Chico Buarque, é, portanto, uma experiência que permite olhar para nós mesmos, para como estávamos, como estamos e, naturalmente, onde não queremos estar. E não deveríamos querer estar no curral, com tantos campos floridos em nossa região.