Quando o Quixote afirmou que tinha certeza de que sabia quem era
Quando o Quixote afirmou que tinha certeza de que sabia quem era
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Ainda no início de suas aventuras, no caminho de volta para casa, onde ia buscar dinheiro, camisas limpas e um unguento para as feridas, o Quixote, cujo sonho era contrastado com a realidade, fez dessa última um apêndice daquele primeiro. É o sonho que parece importar mais do que real. No chão, moído, Quixote não conseguia se mexer. Sentia dores. Muitas dores. Vivia uma situação difícil e, como sempre fazia nessas horas, lembrava-se do que leu nos romances de cavalaria.
O resíduo das leituras era o instrumento de enfrentamento das dificuldades, que na realidade decorriam justamente das leituras. Causa e consequência se confundiam. Mas qual realidade importava ao Quixote? Ou qual sonho lhe parecia o mais distante de uma realidade que negava? Lembrou-se então de uma passagem do Marquês de Mântua, que em certa aventura se viu ferido no meio da mata. Imitando o personagem, rolava pelo chão, recitando o que o herói ferido falava pelos livros. O resíduo da informação literária era o seu manual de procedimento diário. Seguia com exatidão e disciplina.
Nesse exato momento, relata-nos Cervantes, Quixote confundia um vizinho com o Marquês de Mântua, misturava uma figura amiga e real com uma figura simpática e ideal. Na verdade, era um lavrador que se aproximava. Ajoelhou-se. Tocou Quixote afetuosamente, perguntando o que ocorrera. Era o Marquês de Mântua, em pessoa, exatamente como Quixote confirmava em sua imaginação, com a fantasia que a realidade provocava.
O lavrador levantou a viseira do cavaleiro caído, reconhecendo Alonso Quejano e perguntando o que teria sucedido. Pediu a Quixote que o reconhecesse. Ante a recusa, o vizinho (Pedro Alonso) insistia que falava com Alonso Quejano, ao que Quixote respondeu que sabia exatamente quem era: eu sei quem sou! Era um grande homem, cujo heroísmo a nossos olhos consiste em saber quem era, de acordo com a percepção que Quixote fazia de si mesmo. Percebia o seu heroísmo por dentro.
Na observação de Unamuno, o Quixote afirmou que sabia quem era; não afirmou que era quem queria ser. Há uma diferença na compreensão do que somos, quando nos cotejamos com a inspiração do que queremos ser. Há quem confunda o que é com o que quer ser. Nos tipos literários ideais, é o que se denomina de bovarismo. A expressão vem de Emma Bovary, personagem de Gustave Flaubert, para quem o mundo real era seu universo ideal.
O lavrador aguardou o cair da tarde para levar o vizinho ferido até sua casa, onde era procurado e esperado pela ama e pela sobrinha. Não queria que vissem o estado (físico e mental) do estimado amigo. Quando chegaram à casa do Quixote houve um grande alvoroço. Lá estavam também o padre e o barbeiro, que eram amigos de Alonso Quejano. A ama questionava o padre quais seriam as razões que levaram Alonso à aquela desgraça. Estava desaparecido há três dias.
Concordavam que a leitura dos romances de cavalaria havia transformado o juízo do homem. Falava sozinho. A ama recordou que Alonso lia por dias seguidos. Subitamente, pegava na espada e atacava as paredes. Quando se cansava, afirmava que havia matado quatro gigantes. Explicava o suor que lhe caía do rosto como o sangue que lhe vinha dos ferimentos heroicos.
A culpa era dos livros. O padre propôs um ato público para a queima daquelas obras tão perigosas. Queria queimar aqueles livros todos na esperança de que outras pessoas não fossem também levadas à loucura. O lavrador atentamente escutava a conversa e se esforçava para entender o que ocorrera com o vizinho.
Com a aproximação do Quixote, o lavrador começou a falar como se fosse, de fato, o Marquês de Mântua. Não se contraria um louco. À afirmação de que alguém seja Napoleão, melhor que perguntemos pela sorte de Josefina. Quixote explicou por que estava na cama. Caiu do Rocinonte e enfrentou gigantes. Não respondeu a outras perguntas que lhe fizeram. O Quixote (e a observação é de Jorge Luis Borges) contrapunha um mundo imaginário poético a um mundo real prosaico. Queria comer e dormir. O lavrador contou ao padre tudo o que viu. Mas não foi o que Quixote viu ou viveu. Com quem a razão?