G. K. Chesterton - O que há de errado com o mundo (Trechos)

(Chesterton, G. K. O que há de errado com o mundo: Tradução de Luiza Monteiro de Castro e Silva Dutra. 1ed. São Paulo: Ecclesiae, 2013. 218p)

Por Rodrigo Gurgel

Prefácio do livro “O que há de errado com o mundo”, de G. K. Chesterton (Editora Ecclesiae).

Usando de sua excepcional qualidade para trabalhar com metáforas, Chesterton cria a famosa filosofia da árvore e da nuvem:

[…] A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modifica é apenas o cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser centrais. Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto. Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como numa árvore; objetivam a modificação total e absoluta de cada parte a cada minuto, como a transformação que sofrem as nuvens.

Mas se adotarmos como filosofia uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado e a civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive amanhã mesmo. Pois bem, eu não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas um caos perpétuo; creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a natureza de cada coisa. Penso, por conseguinte, que não pode evoluir a civilização que não esteja razoavelmente completa, e a nossa, tão científica, avançada e progressista, está irracionalmente incompleta.

Incansável polígrafo, em maio de 1910 Chesterton publicaria novo artigo, no Daily News – uma aula de teologia e estilística:

Não utilizem um substantivo e depois um adjetivo que contradiga o substantivo. O adjetivo qualifica, não contradiz. Não digam “deem-me um patriotismo livre de fronteiras”, porque é como se dissessem “deem-me um pastel de carne sem carne”. Não digam “anseio por uma religião mais ampla, na qual não existam dogmas especiais”, porque seria como dizer “quero um quadrúpede maior que não tenha patas”. Quadrúpede significa algo com quatro patas e religião significa aquilo que compromete o homem com uma doutrina universal. Não deixem que o dócil substantivo seja assassinado por um adjetivo exuberante e jubiloso…

No entanto, O que há de errado com o mundo realmente não foi escrito para agradar. Essa era a última preocupação de Chesterton naquela Inglaterra sacudida por dois grandes movimentos políticos. A filiação aos sindicatos crescia de forma expressiva – de 2,5 milhões de trabalhadores em 1901 para 4 milhões em 1913 – e estes, lutando por representação parlamentar, fizeram com que o Labour Party, fundado em 1900, pulasse de dois deputados, em 1901, para cinquenta em 1906. Aproveitando a onda trabalhista, que tinha apoio dos Whigs – liberais e anticatólicos –, a esquerda, com socialistas e anarquistas, ganhou força, a ponto de, em 1911, quando Jorge V assume o trono, a Câmara dos Lordes ser praticamente forçada – sob a pressão do primeiro-ministro liberal, Herbert Henry Asquith – a votar a limitação dos seus próprios poderes. Pari passu, o movimento sufragista – fundador do feminismo contemporâneo –, que vinha crescendo lentamente desde a década de 1830, ganha força, em 1903, com a fundação do Women’s Social and Political Union (WSPU), facção violenta da National Union of Women’s Suffrage Societies (NUWSS). Nos anos seguintes, o WSPU tornou-se um aglomerado de agitadoras profissionais, responsável por depredações, tumultos e outras formas de violência, mas soube capitalizar a opinião pública utilizando-se do recurso da greve de fome, dentro ou fora das prisões.

Chesterton alertava:

A única forma de falar do mal social é ir direto ao ideal social. Todos temos consciência da loucura nacional, mas o que é a sanidade nacional? Chamei este livro de “O que há de errado com o mundo”, mas esse título algo indômito conduz a um só lugar: errado é não solicitarmos o que é certo.

E completa, de maneira inquestionável, com um período cujo vigor nos contagia:

Os grandes ideais do passado fracassaram não porque tenhamos sobrevivido a eles, mas porque não foram vividos o bastante. A humanidade não transpôs a Idade Média: fugiu dela em debandada. O ideal cristão não foi julgado e considerado deficiente: foi considerado difícil e deixado injulgado.

Este é o cerne do pensamento antissufragista de Chesterton. E não há nenhum exagero em dizer que ele prevê as consequências dessa “primeira onda” do feminismo – para citar a classificação utilizada por alguns estudiosos contemporâneos –, início de um movimento maior, provocador da “segunda onda”, anti-família e anti-maternidade, cuja tarefa foi levar as primeiras reivindicações, de igualdade perante a lei, para o âmbito da vida íntima, chegando, então, à “terceira onda”, experimentada hoje, com a ideologia de gênero e a tentativa de ignorar a ordem biológica, de maneira a transformar masculinidade e feminilidade em meras construções culturais, além de promover a libertinagem e o aborto.

As mulheres são as grandes vítimas da revolução sexual […]. Na sociedade hipersexualizada, a mulher se converte com frequência em objeto de usar e jogar fora. As feministas conseguiram impor à mulher o modelo sexual masculino”. E em outro trecho, citando a jornalista e ensaísta Eugenia Rocella: “O neofeminismo converte as mulheres em ‘machos falidos’”.

[...] Os ideólogos pretendem substituir o matrimônio pelo hedonismo absoluto.

[...] O sucesso do matrimônio vem depois do fracasso da lua de mel.

[...] Com seu raciocínio envolvente, construído por meio de analogias e paradoxos inesperados, Chesterton dilui a camada de banalidade que recobre as coisas comuns.

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(Chesterton, G. K. O que há de errado com o mundo: Tradução de Luiza Monteiro de Castro e Silva Dutra. 1ed. São Paulo: Ecclesiae, 2013. 218p)

Esse esquema médico de pergunta e resposta é uma asneira, a primeira grande asneira da sociologia. Sempre obriga a determinar a doença antes de encontrar a cura, quando a própria definição e dignidade do homem exige, na verdade, que, em questões sociais, achemos a cura antes da doença. (p. 25)

O assombro, dizia Aristóteles, é a mãe do desejo de compreender. (p. 23)

A partir do momento em que damos a uma nação a unidade e a simplicidade de um animal, começamos a pensar de maneira selvagem. Não é porque todo homem é bípede que cinquenta homens serão uma centopeia. (p. 26)

De todos os exemplos de erro que brotam dessa fantasia médica, o pior é o que temos à nossa frente: o hábito de descrever exaustivamente uma doença social e, em seguida, propor um remédio social. (p. 26)

Concordamos quanto ao mal. Quanto ao bem, arrancaríamos os olhos uns aos outros. (p. 27)

O caso social é exatamente o oposto do caso médico. Os médicos discordam quanto à natureza exata da doença, embora concordem sobre a natureza da saúde. Nós, ao contrário, concordamos que a Inglaterra está insalubre, mas metade de nós seria incapaz de ver saúde naquilo que a outra metade chama de “saúde florescente”. Os abusos públicos são tão patentes e pestilentos que arrastam todas as pessoas generosas para uma espécie de unanimidade fictícia. Esquecemo-nos de que, embora concordemos quanto aos abusos, podemos discordar muito quanto aos usos. O senhor Cadbury e eu concordaríamos sobre os pubs perniciosos. Seria à frente do bom pub que nossa rixa pessoal começaria. (p. 28)

Em nossa época, despontou uma fantasia singularíssima: a de que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um homem prático. Seria muito mais verdadeiro dizer que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico. Um homem prático é alguém acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam normalmente. Quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do homem com uma doutrina que explica porque elas não estão funcionando. Enquanto Roma arde em chamas, é errado tocar violino; mas é correto estudar teoria hidráulica. (pp 30-31)

Esquecemo-nos de que a palavra “compromisso” contém, entre outras coisas, a rígida e ressoante palavra “promessa”. Moderação não é vagueza; é algo tão definido quanto a perfeição. O ponto intermediário é tão fixo quanto o ponto extremo. (p. 33)

O hipócrita à moda antiga, um Tartufo ou um Pecksniff, era um homem cujos objetivos eram na verdade mundanos e práticos, embora ele os fizesse passar por religiosos. Mas o novo hipócrita é aquele cujos objetivos são realmente religiosos, embora ele os faça passar por mundanos e práticos. (p. 34)

Em suma, numa época de preconceitos, a fé humana racional precisa ter por couraça o preconceito, assim como, numa época de lógica, ela se munia da lógica. Mas a diferença entre os dois métodos mentais é marcante e inequívoca. A diferença essencial é esta: preconceitos são divergentes, ao passo que credos estão sempre colidindo. Os crentes se chocam entre si, ao passo que os intolerantes não se interpõem uns no caminho dos outros. Um credo é algo coletivo; até seus pecados são compartilháveis. Já um preconceito é algo privado; até sua tolerância é misantrópica. (pp. 37-38)

O homem moderno já não preserva recordações de seu bisavô, mas compromete-se a escrever uma detalhada e autoritativa biografia de seu bisneto. (p. 40)

O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. [...] Os homens inventam novos ideais porque não se atrevem a buscar os antigos. Olham com entusiasmo para a frente porque têm medo de olhar para trás. [...] Todos os homens da história que fizeram algo pelo futuro tinham os olhos fixos no passado. (pp. 42-43)

O homem só pode encontrar vida entre os mortos. Ele é um monstro disforme com os pés virados para a frente e o rosto para trás. Pode criar um futuro luxuoso e gigantesco, contanto que pense no passado. Quando tenta pensar no futuro em si, sua mente diminui até transformar-se num pontinho minúsculo de imbecilidade, a que alguns chamam Nirvana. (p. 43)

Há uma metáfora que muito apraz os modernos. Eles estão sempre dizendo: “Você não pode atrasar o relógio”. A réplica simples e óbvia é: “Posso sim”. Um relógio, enquanto peça construída por um homem, pode voltar, pela ação do dedo humano, a qualquer horário ou número. Do mesmo modo, a sociedade, também uma construção humana, pode ser reconstruída conforme qualquer plano que já existiu. (p. 46)

Os grandes ideais do passado fracassaram não por que tenhamos sobrevivido a eles, mas porque não foram vividos o bastante. A humanidade não transpôs a Idade Média: fugiu dela em debandada. O ideal cristão não foi julgado e considerado deficiente: foi considerado difícil e deixado injulgado. (p. 50)

A teoria da Revolução Francesa pressupunha duas coisas no governo; coisas que alcançou em sua época, mas que certamente não legou a seus imitadores na Inglaterra, na Alemanha e na América. A primeira delas era o ideal da pobreza honrosa: um estadista deveria ser algo estoico. A segunda era o ideal da publicidade extrema. (p. 50)

Só há uma coisa nova a fazer sob o sol: olhar para o sol. Se o tentarmos num claro dia de junho, saberemos por que os homens não olham diretamente para seus ideais. Só há uma coisa realmente assustadora a fazer como ideal: realizá-lo, encarar o ardente fato lógico e suas pavorosas consequências. Cristo sabia que cumprir a lei seria um portento mais esplêndido que a destruir. Isso se aplica aos dois exemplos que citei e a todos os outros. Os pagãos sempre adoraram a pureza: Atena, Ártemis, Vesta. Mas foi só as virgens mártires começarem a praticá-la desafiadoramente que eles as lançaram aos leões e fizeram-nas deslizar sobre carvão em brasa. O mundo sempre amou acima de tudo a ideia do homem pobre. (p. 53)

Mas no mundo moderno confrontamo-nos principalmente com o extraordinário espetáculo das pessoas acercando-se de novos ideais porque ainda não experimentaram os velhos. Os homens não se cansaram do cristianismo; eles nunca acharam cristianismo suficiente para se cansarem dele. Os homens nunca se fartaram de justiça política; fartaram-se de esperar por ela.

Assim sendo, para os fins deste livro, proponho tomar um só desses velhos ideais, mas um que talvez seja o mais velho. Tomo o princípio da domesticidade: a casa ideal, a família feliz, a sagrada família da história. Por ora, basta dizer que, assim como a Igreja e a república, esse princípio vem sendo atacado, especialmente neste momento, por quem nunca o conheceu ou por quem falhou em realizá-lo. Um sem número de mulheres modernas rebelaram-se em tese contra a domesticidade porque jamais a conheceram na prática. Bandos de pobres são levados para casas de trabalho sem jamais terem conhecido a casa. Em termos gerais, a classe culta está gritando para que a deixem sair do lar decente, enquanto a classe trabalhadora está berrando para que a deixem entrar. (p. 54)

Estou perfeitamente consciente de que, em nossa época, a palavra “propriedade” foi pervertida pela corrupção dos grandes capitalistas. Pelo que a gente anda a dizer, poder-se-ia pensar que os Rotschilds e os Rockefellers são defensores da propriedade. Mas eles obviamente são inimigos da propriedade, pois são inimigos dos limites delas. Já não querem sua terra própria se não a alheia. [...] O duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade, assim como seria a negação do casamento se ele tivesse todas as nossas esposas em um único harém. (pp. 55-56)

Criaturas tão próximas entre si como marido e mulher ou mãe e filhos têm o poder de fazer um ao outro feliz ou infeliz, poder que nenhum tipo de coerção pública é capaz de administrar. (pp. 57-58)

O princípio é este: em tudo que é digno de ter – mesmo em todos os prazeres – há uma porção de dor ou tédio que deve ser preservada a fim de que o prazer possa renascer e perdurar [...]. O sucesso do matrimônio vem depois do fracasso da lua de mel. [...] A coerção é uma espécie de encorajamento, ao passo que a anarquia (ou isso que alguns chamam de liberdade) é essencialmente sufocante, porque essencialmente desencorajadora. Se todos nós flutuássemos no ar como bolhas, livres para vaguear por qualquer lugar a qualquer hora, o resultado prático disso seria que ninguém teria coragem de iniciar uma conversa. Como seria desagradável sussurrar as primeiras palavras de uma frase em tom amigável e então ter de gritar o fim dela porque a pessoa com que se estava conversando afastou-se, flutuando no livre e informe éter. Um deve apoiar o outro para fazerem justiça um ao outro. Se os americanos podem-se divorciar por “incompatibilidade de temperamento”, não consigo entender como ainda não estão todos divorciados. Conheci muitos casamentos felizes, mas nunca um compatível. O objetivo do casamento é lutar e sobreviver ao instante em que a incompatibilidade se mostra incontestável. Pois um homem e uma mulher, como tais, são incompatíveis. (pp. 59-60)

Mas, de todas as concepções modernas geradas pela simples riqueza, a pior é esta: a concepção da domesticidade como algo estúpido e submisso. Dentro do lar, dizem, jazem decoro insípido e rotina; fora dele, aventura e variedade – eis a opinião do homem rico. O homem rico sabe que sua própria casa se move sobre rodas de fortuna enormes e silenciosas, que giram à custa do trabalho de um sem número de criados, num ritual silente e ligeiro. Em contrapartida, toda sorte de vadiagem romântica é-lhe acessível do lado de fora de casa, nas ruas. Ora, ele tem montanhas de dinheiro e pode permitir-se ser um vagabundo. (p. 61)

A verdade é que para os moderadamente pobres a casa é o único lugar para a liberdade; mais ainda, o único lugar para a anarquia. É o único recanto da terra em que um homem pode, repentinamente, alterar o sistema, fazer um experimento ou ceder a um capricho. Em qualquer outro lugar ele terá de aceitar as severas regras. (p. 62)

O homem sempre se perdeu. É um vagabundo desde o Éden. Mas sempre soube – ou julgou saber – o que estava buscando. (p. 67)

O deus dos aristocratas não é a tradição, mas a moda, que é o extremo oposto da tradição. Se você quisesse encontrar um antigo toucador norueguês, procuraria por ele na alta sociedade escandinava? Não! Os aristocratas nunca tiveram costumes. Quando muito, têm hábitos, como os animais. Apenas a plebe tem costumes. [...] Os ricos são sempre modernos: esse é o seu negócio. (pp. 69-70)

Essa insolvência não é bramida por todos (como era de imaginar) como um ultrajante feudalismo. É gentilmente censurada por ser socialista. Pois uma aristocracia é sempre progressista, é uma forma de estar sempre atualizada. Suas festas terminam cada vez mais tarde, pois estão tentando viver o amanhã. (p. 71)

O passado é comunal; o futuro deverá ser individualista. No passado estão todos os males da democracia, da variedade, da violência e da dúvida, mas o futuro é puro despotismo, pois o futuro é puro capricho. Sei que ontem eu era um homem tolo, mas amanhã poderei facilmente tornar-me o super-homem. (p. 72)

Não me proponho demonstrar aqui que o socialismo é um veneno. Basta dizer que ele é um remédio, não um vinho. As ideias de uma propriedade privada universal, mas ainda assim privada, de famílias livres, mas ainda assim famílias, de uma domesticidade democrática, mas ainda assim doméstica, e a ideia de uma casa para cada homem continuam a ser a visão real e o ímã da humanidade. Pode ser que o mundo aceite algo mais oficial e geral e menos humano e íntimo; mas o mundo será então como uma mulher de coração partido que entra num enfadonho casamento de conveniência por medo de não conseguir um casamento feliz. Pode ser que o socialismo represente a libertação do mundo, mas ele não é o que o mundo deseja. (p. 75)

A morte e o primeiro amor, embora aconteçam a todos, têm a capacidade de paralisar os corações com o ato trivial de pensar neles. (p. 80)

Assim, trata-se de uma expressão daquela ideia essencial à polidez: a igualdade. Pois a própria palavra “polidez” é apenas a forma grega para a cidadania. A palavra “polidez” é aparentada com a palavra “policial” – que pensamento encantador! O cidadão tem de ser mais polido do que o gentleman; e tal vez o policial tenha de ser o mais cortês e elegante dos três. Mas todos os bons modos devem obviamente partir da simples partilha de algo. Dois homens podem partilhar um guarda-chuva; na falta dele, ao menos poderão partilhar a chuva, com todas as suas ricas potencialidades de gênio e filosofia. (p. 82)

Só há três coisas no mundo que as mulheres não compreendem: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. (p. 84)

Precisamente agora a palavra “camaradagem” promete tornar-se tão fátua quanto a palavra “afinidade”. Há clubes de cunho socialista em que todos os membros, homens e mulheres, chamam-se uns aos outros “camaradas”. Esse hábito em particular não me desperta nenhuma comoção mais séria, hostil ou de outra sorte. Na pior das hipóteses, é um convencionalismo; na melhor, um flerte. Interessa-me aqui apenas assinalar um princípio racional. Se você decidir ajuntar um monte de flores, lírios, dálias, tulipas e crisântemos, e chamá-las todas de margaridas, descobrirá que corrompeu a bela palavra “margarida”. Se você decidir chamar todas as relações humanas de camaradagem, se incluir sob esse nome o respeito de um jovem por uma venerável profetisa, o interesse de um homem por uma linda mulher que o despreza, o gosto de um velho obscurantista e filosófico por uma garota impudente e inocente, o término da mais desprezível querela ou o começo do amor mais grandioso, se quiser chamar todas essas coisas de camaradagem, não ganhará nada com isso; só perderá uma palavra. As margaridas são óbvias, universais e abertas, mas são apenas uma espécie de flor. A camaradagem é óbvia, universal e aberta, mas é apenas uma espécie de afeição. Tem características que destruiriam qualquer outra espécie. Quem quer que tenha conhecido a verdadeira camaradagem num clube ou num regimento sabe que ela é impessoal. (p. 85)

A partir do momento em que a beleza é mencionada na amizade masculina, as narinas se obstruem com o cheiro de coisas abomináveis. A amizade precisa ser fisicamente suja se quiser ser moralmente limpa. [...] Se os homens tiverem de viver sem mulheres, não poderão viver sem regras. Algo similar a essa exatidão artificial obtém-se no exército; e, em muitos sentidos, um exército tem de ser monástico, com a diferença de que ele tem o celibato, mas não a castidade. (p. 86)

A democracia em seu sentido humano não é o arbítrio da maioria; não é sequer o arbítrio de todos. Pode ser definida com mais correção como o arbítrio de qualquer um. Quero dizer que ela está amparada naquele hábito de clube de aceitar que um completo desconhecido pode inevitavelmente ter algumas coisas em comum conosco. Somente as coisas a que supomos que qualquer um aderiria têm a autoridade total da democracia. (p. 87)

Mas não é do triunfo dos superiores que os homens gostam, mas do combate entre iguais. E isso apraz-lhes tanto, que chegam ao ponto de introduzir uma igualdade artificial em seus esportes competitivos. Entristece pensar quão poucos dos que estabelecem nossos handicaps esportivos têm alguma probabilidade de perceber que são republicanos abstratos e até mesmo severos. [...] O céu não funciona nem trabalha; ele joga. [...] Os luditas tinham razão, talvez não ao pensar em que as máquinas diminuiriam o número de trabalhadores, mas certamente ao pensar que as máquinas diminuiriam o número de patrões. Mais rodas significam menos manivelas; menos manivelas significam menos mãos. A maquinaria da ciência tem de ser individualista e isolada. Uma multidão pode gritar ao redor de um palácio, mas uma multidão não pode abafar um telefone com seus gritos. Basta o especialista aparecer para a democracia ser, de uma só vez, semidestruída. (pp. 89-90)

Só há dois tipos de estrutura social concebíveis, governo pessoal e governo impessoal. Se meus amigos anarquistas não querem ter regras, ao menos terão regentes. A preferência pelo governo pessoal com seu tato e flexibilidade chama-se monarquismo. A preferência pelo governo impessoal com seus dogmas e definições chama-se republicanismo. A objeção tacanha tanto a reis quanto a credos chama-se tolice – pelo menos não encontro palavra mais filosófica para isso. (pp. 93-94)

A grande heresia moderna, que modificou a alma humana a fim de adaptá-la às circunstâncias, em vez de modificar as circunstâncias humanas para adaptá-las à alma humana. (p. 96)

Uma revolução é algo militar: ela tem todas as virtudes militares, dentre as quais a virtude de chegar ao fim. (p. 99)

Ao menos espiritualmente deve-se admitir a necessidade de algum equilíbrio generalizado que compense a extravagância dos especialistas. (p. 104)

Tudo foi separado de tudo o mais, tudo ficou frio. Logo ouviremos contar de especialistas separando letra e melodia numa canção, sob o pretexto de que uma atrapalha a outra. (p. 105)

Ao homem mediano, o que lhe dificulta ser universalista é o fato de ter de ser especialista; ele não tem apenas de aprender um ofício, mas tem de aprendê-lo tão perfeitamente que lhe possa servir de sustentáculo numa sociedade mais ou menos implacável. (p. 106)

A tradição decidiu que somente a metade da humanidade precisa ser monomaníaca. Decidiu que em cada lar há de haver um comerciante e um factótum. Mas também decidiu, entre outras coisas, que esse factótum deve ser uma factótum. Acertadamente ou não, decidiu que essa especialização e esse universalismo deveriam ser divididos entre os sexos, que se deveria deixar a inteligência para os homens e a sabedoria para as mulheres; pois a inteligência mata a sabedoria, e essa é uma das poucas coisas certas e tristes. (p. 107)

As mulheres não foram mantidas nos lares para conservá-los estreitos; ao contrário, foram mantidas nos lares para conservá-los amplos. Do lado de fora do lar, o mundo era uma massa de exiguidades, um labirinto de vias estreitas, um manicômio de monomaníacos. (p. 109)

A mente que segue por caminhos selvagens é a do poeta. (p. 110)

Os dois pontos em que a mulher é verdadeiramente e por si mesma mais tenaz poderiam grosso modo ser sumarizados nos ideais da parcimônia e da decência. (p. 114)

O objeto mais prosaico em uma casa é a lata de lixo, e a grande objeção ao novo domicílio moderno, fastidioso e estético, é simplesmente a de que, num tal ménage moral, a lata de lixo tem de ser maior que a casa. [...] O fim de toda boa mulher é dar uso aos subprodutos, ou, em outras palavras, revirar a lata de lixo. (P. 115)

Os prazeres mais masculinos têm a qualidade de ser efêmeros. (p. 117)

A única regra segura nesse tópico é sempre lidar com a mulher, nunca com mulheres. “Mulheres” é palavra dissoluta. Eu a utilizei repetidamente neste capítulo, mas ela sempre soa repugnante. Cheira a cinismo oriental, a hedonismo. Toda mulher é uma rainha cativa. Mas toda multidão de mulheres não passa de um harém desfeito. Não estou aqui a expressar meus próprios pontos de vista, se não aqueles de praticamente todas as mulheres que conheci. É deveras injusto dizer que uma mulher odeia, uma a uma, as outras mulheres, mas penso que não mentiria se dissesse que ela as detesta quando agrupadas num confuso amontoado de mulheres. E isso não porque despreze seu próprio sexo, senão porque o respeita. E respeita especialmente a inviolabilidade e a separação dos itens representados na conduta pela ideia de decência e na moral pela ideia de castidade. (p. 119)

A maioria dos homens, se falasse com sinceridade, concordaria que o predicado mais terrível de uma mulher não é ser sentimental, é não o ser. (p. 122)

O mais moderno dos países, os Estados Unidos da América, introduziu, com um vago sabor de ciência, um método que chama de “o terceiro grau”. Trata-se simplesmente da extorsão de segredos por meio de fadiga nervosa, o que não dista muito da extorsão por meio de cominação de dor física. [...] Eis, portanto, o primeiro elemento essencial de um governo: a coerção, elemento necessário, embora nada tenha de nobre. Posso observar, de passagem, que, quando o povo diz que o governo se baseia na força, ele dá um admirável exemplo do cinismo velado e confuso da modernidade. O governo não se baseia na força; ele é força. (p. 131)

Numa república, toda punição é tão sagrada e solene quanto um linchamento. (p. 133)

A imensa fundamental função em torno da qual gira toda a antropologia, a do sexo e nascimento, jamais esteve dentro do estado político, mas sempre fora dele. O Estado se ocupava com a questão trivial de matar pessoas, mas sabiamente deixava de lado o assunto de fazê-las nascer. Um eugenista poderia dizer, com alguma razão, que o governo é uma pessoa distraída e inconsequente que se preocupa em sustentar a velhice de pessoas que jamais foram crianças. (p. 138)

Em todas as lendas os homens sempre consideraram que as mulheres eram sublimes individualmente, mas terríveis quando arrebanhadas. (p. 141)

A fuligem da indústria e a tinta da imprensa política são dois pigmentos pretos que, juntos, não fazem um branco. É provável que a maioria dos feministas concordaria comigo em que as mulheres estão sob uma vergonhosa tirania nas lojas e fábricas. Eu quero destruir a tirania. Eles querem destruir a feminilidade. Eis a única diferença entre nós. (p. 144)

A diferença entre puritanismo e catolicismo não está em aceitar uma meia dúzia de palavras e gestos como sagrados e significativos, mas em aceitar que quaisquer palavras e gestos são sagrados e significativos. Para um católico, qualquer ato cotidiano é uma dramática dedicação ao serviço do bem ou do mal. Para o calvinista, nenhum ato pode ter caráter tão solene, uma vez que a pessoa que o pratica foi predestinada desde a eternidade e agora não faz mais que preencher seu tempo livre até que se cumpra seu destino. A diferença é algo mais sutil que os pudins de ameixa ou os teatros amadores. A diferença é que, para um cristão como eu, esta breve vida terrena é intensamente emocionante e preciosa; para um calvinista como o sr. Shaw, ela é confessadamente maquinal e desinteressante. Para mim, esses setenta anos são a batalha. Para o calvinista fabiano (segundo sua própria confissão), são apenas uma longa procissão de vence dores com seus lauréis e vencidos com seus grilhões. Para mim, a vida terrena é o drama; para ele, é o epílogo. Os partidários de Shaw pensam no embrião; os espíritas, no fantasma; mas os cristãos pensam no homem. E é bom que tenhamos essas coisas bastante claras. (p. 146)

A educação é uma forma de veneração da vontade, não uma forma covarde de veneração dos fatos. (p. 151)

Fé e credo não são parônimos, mas significam exatamente a mesma coisa. Credo é a palavra latina para fé. (p. 152)

É óbvio que o mais importante na educação é que ela não existe; não existe como existem a teologia ou a cavalaria. Teologia é uma palavra como “geologia”, cavalaria é uma palavra como “caldeiraria”. Essas ciências podem ou não ser salutares como passatempos, mas lidam com pedras e caldeiras, com objetos bem definidos. Mas educação não é uma palavra como “geologia” ou “caldeira”. Educação é uma palavra como “transmissão” ou “herança”. Não é um objeto, mas um método. (p. 153)

É estranho que as pessoas falem em separar o dogma da educação. O dogma é, na verdade, a única coisa que não pode ser separada da educação. Ele é educação. Um professor não dogmático é simplesmente um professor que não ensina. (p 154)

A falácia da moda é crer que com a educação podemos dar às pessoas algo que não recebemos. Pelo que dizem, poder-se-ia pensar numa espécie de química mágica que, numa trabalhada miscelânea de refeições higiênicas, banhos, exercícios respiratórios, ar fresco e desenho à mão livre, permitiria-nos produzir algo esplêndido por mero acaso; poderíamos criar o que não somos capazes de imaginar. Pois bem, claro está que estas páginas não têm outro propósito geral senão salientar que não somos capazes de criar nada de bom a menos que o tenhamos imaginado. É curioso que essas pessoas, que em matéria de hereditariedade estão tão obstinadamente aferradas à lei, em matéria de meio quase acreditem em milagres. Elas insistem em que nada além do que estava nos corpos dos pais pode ter contribuído para formar os corpos dos filhos. Mas parecem pensar que, de algum modo, podem entrar nas cabeças dos filhos coisas que não estavam nas cabeças dos pais; coisas que, na verdade, não estavam em lugar nenhum.

Surgiu dessa lógica um brado tolo e pernicioso, característico da confusão. Refiro- me ao brado chamado “Save the children” (“Salvem as crianças”). Ele é, obviamente, parte dessa morbidez moderna que insiste em tratar o Estado (que é o lar do homem) como uma espécie de recurso desesperado em tempos de pânico. Esse oportunismo aterrador é também a origem do socialismo e de outros sistemas. Assim como recolheriam e compartilhariam toda a comida, como fazem os homens em tempos de fome, também separariam as crianças dos pais, como fazem os homens num naufrágio. O que nunca lhes passou pela cabeça é que uma comunidade humana pode não estar num surto de fome nem ter sido assolada por um naufrágio. Esse brado de “salvem as crianças” tem em si a odiosa implicação de que é impossível salvar os pais; em outras palavras, de que muitos milhões de europeus adultos, sãos, responsáveis e autossuficientes devem ser tratados como lixo ou como restos e varridos da discussão, chamados de dipsomaníacos, porque bebem em pubs e não em suas casas, chamados de inaptos para o trabalho, porque ninguém sabe como arranjar-lhes emprego, chamados de estúpidos se ainda apoiam convenções e chamados de vadios se ainda amam a liberdade. (p 155)

Não há como livrar-se da autoridade na educação. [...] Só mencionei o educere e a extração das faculdades a fim de mostrar que nem mesmo com esse truque mental é possível livrar-se da inevitável ideia da autoridade parental ou escolar. O educador que extrai é tão arbitrário e coercitivo quanto o instrutor que incute, pois aquele extrai o que melhor lhe parece, decide o que deve e o que não deve ser desenvolvido na criança. Suponho que não extraia a descuidada faculdade da falsificação. Não extrai – ao menos até agora – um tímido talento para a tortura. O único resultado de toda essa pomposa e precisa distinção entre o educador e o instrutor é que o instrutor empurra para onde quiser e o educador puxa de onde quiser. (pp. 157-158)

Às pessoas mais jovens dever-se-ia ensinar as coisas maia velhas, as verdades seguras e experimentadas que se ensinam primeiro aos bebês. (p. 159)

Não há como ter educação livre, pois, se se deixa uma criança livre, não é possível educá-la. (p. 162)

Patriotismo é cultivar o hábito nada inglês de içar uma bandeira no Dia do Império. (p. 169)

A verdadeira tarefa da cultura hoje não é uma tarefa de expansão, mas certamente de seleção – e rejeição. (p. 169)

Uma coisa é dizer que a máquina voadora de Smith é um fracasso, outra bem diferente é dizer que Smith fracassou ao fazer uma máquina voadora. (p. 173)

Os educadores aristocráticos têm o propósito positivo de formar gentlemen; e eles formam gentlemen até mesmo quando os expulsam. Os educadores populares diriam que tiveram uma ideia muito mais nobre: formar cidadãos. Admito que seja uma ideia muito mais nobre, mas onde é que estão os cidadãos? Sei que o almofadinha à moda Eton (Escola interna para garotos, fundada em 1440, por Henrique VI da Inglaterra) foi endurecido por um estoicismo tolo e sentimental a que chamam “ser um homem do mundo”. Mas não consigo imaginar o garoto dos recados enrijecido por um estoicismo republicano a que chamam “ser um cidadão”. O aluno diria certamente, com um hauteur (altura, “tom”) fresco e inocente: “Sou um gentleman inglês.” Mas não me entra na cabeça a imagem do garoto dos recados erguendo a cabeça para o alto, contemplando as estrelas e dizendo: “Romanus civis sum” (Sou cidadão romano). (pp. 173-174)

A objeção definitiva à escola pública inglesa está certamente em sua gritante e indecente negligência do dever de dizer a verdade. (p. 179)

Quando um homem diz realmente a verdade, a primeira verdade que diz é que ele mesmo é um mentiroso. [...] Ele era um típico político de partido; e um político de partido é um político que poderia pertencer a qualquer partido. Sendo uma pessoa desse tipo, a cada guinada ou mudança de estratégia partidária, ele poderia ter iludido muita gente ou ter-se iludido a si mesmo. (p. 180)

Num desditoso dia em meados do séc. XIX, alguém descobriu – alguém bastante abastado – as duas grandes verdades modernas: que, para os ricos, lavar-se é uma virtude; para os pobres, um dever. Pois um dever é uma virtude impraticável. E uma virtude é geralmente um dever que se pode praticar facilmente, como a limpeza do corpo para as classes mais altas. Mas, na tradição das escolas públicas, o sabão se tornou respeitável simplesmente por ser agradável. Aos banhos se lhes atribui parte da decadência do Império Romano; mas aos mesmos banhos se atribui parte da energia e do rejuvenescimento do Império Britânico. Há distintos ex-alunos de escolas públicas, bispos, dignitários, diretores e altos políticos que nesses tributos que de tempos em tempos direcionam a si mesmos costumam identificar limpeza física com pureza moral. Se bem me lembro, eles dizem que o aluno da escola pública é limpo por dentro e por fora. Como se não fosse de conhecimento geral que, enquanto os santos podem permitir-se ficar sujos, aos sedutores a limpeza é fundamental. Como se não fosse de conhecimento geral que a prostituta tem de estar limpa, porque seu trabalho é atrair, enquanto a boa esposa pode estar suja, porque seu trabalho é limpar. Como se não soubéssemos que, quando quer que o trovão de Deus estronde sobre nossas cabeças, é bem provável que encontremos o homem mais simples numa carroça de esterco e o mais complexo salafrário numa banheira. (pp. 181-182)

Há algo de pestilencialmente pecksniffiano em não fazer uma tarefa difícil sob o pretexto de não ser difícil o bastante. (p. 183)

Os revolucionários fazem a reforma; os conservadores apenas conservam a reforma. Eles jamais reformam a reforma, o que geralmente é muito mais necessário. Assim como a corrida armamentista é apenas uma espécie de lânguido plágio, a corrida dos partidos é apenas uma espécie de lânguida herança. (pp. 184-185)

Como diz o sr. Blatchford: “O mundo não quer piedade, mas sabão... e socialismo.” A piedade é uma das virtudes populares, enquanto o sabão e o socialismo são dois passatempos da classe média-alta. (p. 186)

As classes educadas transformaram a maioria das piadas sobre aparência física em tabus. Ao fazê-lo, contudo, converteram em tabu não só o humor de fundo de quintal, mas também metade da literatura mundial sadia. [...] As classes educadas adotaram um costume horrendo e pagão: considerar a morte um assunto desagradável demais para ser abordado, deixando-a sobreviver sob a forma de um segredo pessoal, como um defeito físico. Os pobres, ao contrário, são espalhafatosos e tagarelas ao comunicar suas perdas, no que têm razão. Entenderam uma verdade da psicologia que está por trás de todos os costumes funerários dos filhos dos homens. A melhor maneira de diminuir o sofrimento é ampliá-lo; a melhor maneira de suportar uma crise dolorosa é insistir que ela é uma crise; permitir àqueles que se sentem tristes que ao menos se sintam importantes. Nisso, os pobres são simplesmente os sacerdotes da civilização universal, e seus festins embuchados e parlatórios solenes cheiram às carnes cozidas de Hamlet, ao pó e ao eco dos jogos fúnebres em honra de Pátroclo . (pp. 187-188)

Os aristocratas não têm vergonha de serem alimentados pela nação. (p. 190)

Se existem os mandamentos de Deus, então devem existir os direitos do homem. (p. 195)

Logo que se começa a pensar no homem como uma coisa mutável e alterável, é sempre fácil ao forte e astuto submetê-lo a moldes novos com toda sorte de propósito artificial. (p. 197)

Na confusa nuvem de moscas e abelhas, a ideia da família humana está se tornando cada vez mais fraca, quase que a desaparecer. A colmeia ficou maior que a casa, as abelhas estão destruindo seus captores. (p. 201)

Reforma-se uma coisa por gostar-se dela; destrói-se algo de que não se gosta. Reformar é fortalecer. [...] Creio firmemente na família e, portanto, eu reformaria a família como consertaria uma cadeira; e jamais negarei, por um momento sequer, que a família moderna é uma cadeira que necessita de reparo. (pp. 201-202)

Aparentemente, o progresso significa sermos impelidos para a frente – mas pela polícia. (p. 203)

Só posso expô-lo de maneira mui abreviada, com um sorriso desleixado. Um socialista é um homem que toma a bengala por guarda-chuva pelo simples fato de ambos ficarem na mesma bengaleira. Ora, ainda que fisicamente próximos, ambos são tão diferentes quanto um machado de batalha e uma descalçadeira. As propriedades essenciais de um guarda-chuva são largura e proteção. As propriedades essenciais de uma bengala são finura e, em parte, ataque. A bengala é a espada; o guarda-chuva, o escudo, mas um escudo contra um inimigo diferente e desconhecido: o hostil, mas anônimo, universo. Dizendo com mais propriedade, o guarda-chuva é um telhado, um tipo de casa dobrável. Mas a diferença vital é muito mais profunda do que isso. Ramifica-se em dois reinos da mente humana, com uma fenda entre eles. Pois a questão é que o guarda-chuva é um escudo contra um inimigo tão real, que o consideramos um mero estorvo, enquanto a bengala é uma espada contra inimigos tão completamente imaginários, que os consideramos um mero divertimento. (p. 203)

A pergunta a que todos nós gostaríamos que ambos respondessem é a do ideal original: “Vocês querem manter a família ou não?” [...] Se homens, mulheres e crianças seguirem morando juntos em lares livres e soberanos, aquelas antigas relações tornarão a aparecer; e Hudge terá de tolerá-las. Só poderá evitá-lo destruindo a família, transformando os dois sexos em colmeias e hordas assexuadas e convertendo todos os filhos em filhos do Estado – como Oliver Twist (pp. 206-207)

A mulher devia representar certa sabedoria, bem expressa nos atos de julgar o real valor das coisas e de guardar o dinheiro de maneira sensata. Mas como poderá guardar dinheiro se não houver dinheiro para guardar? A criança devia ver na mãe uma fonte natural de diversão e poesia. Mas como poderá fazê-lo se não for permitido brincar nem nesta nem nas demais fontes? Quais as possibilidades de quaisquer dessas artes e funções antigas numa casa tão terrivelmente virada de pernas para o ar? Numa casa em que a mulher trabalha fora e o homem não? Em que a criança é forçada pelas leis a julgar que as exigências de seu professor da escola são mais importantes que as de sua mãe? Não. (p. 207)

Só poderemos evitar o socialismo com uma transformação tão vasta quanto o socialismo. Se quisermos salvar a propriedade, teremos de distribuí-la quase tão severa e radicalmente como fizera a Revolução Francesa. Se quisermos preservar a família, teremos de revolucionar a nação. (p. 208)

Um homem em seu próprio gramado degusta a eternidade ou, em outras palavras, dispõe-se a trabalhar dez minutos mais do que o necessário. (p. 210)

A plebe nunca se rebelará, a não ser que seja conservadora – ao menos conservadora o bastante para conservar algumas razões para rebelar-se. O mais terrível em toda essa nossa anarquia é constatar que a maior parte dos antigos ataques realizados em nome da liberdade já não podem ser realizados hoje, por causa do obscurecimento dos costumes claros e populares de onde eles provieram. Hoje, o insulto que fez cair o martelo de Wat Tyler poderia ser chamado de exame médico. Hoje, aquela abominável escravidão a que Virginius tinha aversão e de que se vingou poderia ser louvada como amor livre. Hoje, o cruel sarcasmo de Foulon – “que comam capim!” – poderia ser representado como o grito agonizante de um vegetariano idealista. (p. 212)

A parábola e o propósito destas páginas finais, e decerto de todas estas páginas, resume-se à afirmação de que nós devemos imediatamente começar tudo de novo, e começar do outro extremo. Eu começo pelo cabelo de uma garotinha, pois sei que, em todo caso, é uma boa coisa. Tudo o mais é mau, mas o orgulho que uma boa mãe tem dos cabelos de sua filhinha é bom. São essas ternuras adamantinas as pedras de toque de toda época e raça. E se há outras coisas contrárias a isso, elas terão de vir abaixo. Se proprietários de terra, leis e ciências estão contra isso, proprietários de terra, leis e ciências terão de vir abaixo. Com uma faísca da cabeleira ruiva de uma garota de rua, atearei fogo na civilização moderna inteira. Porque se uma garota precisa ter cabelos longos, ela precisa ter cabelos limpos. Para tê-los limpos, não pode ter uma casa suja. Para não ter uma casa suja, ela precisa ter uma mãe livre e desocupada. Para ter uma mãe livre, não podem ter um senhorio usurário. Para que o senhorio não seja usurário, é preciso de uma redistribuição de propriedade. E para tanto será preciso uma revolução. Aquela garota maltrapilha de ruiva cabeleira – que acabo de ver vagando junto à minha casa – não será aparada, mutilada ou alterada. Seu cabelo não será cortado curto como o de um condenado. Não! Todos os reinos da terra serão talhados e mutilados para a ela se adaptarem. Os ventos do mundo serão temperados para esse cordeiro não tosquiado. Todas as coroas que não couberem em sua cabeça serão quebradas. Todo o traje e toda a construção que não estiver em harmonia com sua glória serão jogados fora. Pode ser que a mãe a proíba de prender o cabelo, pois a mãe é uma autoridade natural. Mas o Imperador do Planeta não ousará impor-lhe tal proibição. Ela é a imagem humana e sagrada. Ao seu redor, a estrutura social irá inclinar-se, trincar e cair. Os pilares da sociedade estremecerão e os telhados dos tempos desmoronarão. E nenhum fio de cabelo de sua cabeça será prejudicado. (pp. 213-214)

Se nós realmente impuséssemos eleições gerais aos trabalhadores livres que certamente não gostassem de eleições gerais, então isso seria uma medida inteiramente antidemocrática; se somos democratas, devemos desfazer isso. Nós queremos o que o povo quer, e não os votos do povo. E conceder a um homem, contra a sua vontade, a possibilidade de votar significa tornar a votação algo mais valioso que a democracia assegurada por ela. (pp. 215-216)

Releitura concluída em 05 de maio de 2020.

Crato-CE, 17h09min

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G. K. Chesterton
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 01/05/2020
Reeditado em 02/05/2020
Código do texto: T6934666
Classificação de conteúdo: seguro
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