Moby Dick, de Herman Melville
Moby Dick: uma releitura da narrativa bíblica de Jonas para o século XIX
SANT’ANA, J. S.
1. As diferenças entre uma releitura e o texto original
O presente trabalho busca num primeiro plano relacionar duas narrativas de períodos completamente distintos, a de Moby Dick, escrita nos EUA de meados do século XIX, com toda a efervescência industrial e a busca por uma ascensão social tão comum desse momento histórico; e a história no Antigo Testamento que relata a vida de Jonas, o profeta que tenta fugir da missão dada por Deus e acaba engolido por um grande peixe para que retome o caminho que lhe foi imposto.
Evidentemente a relação entre as duas histórias é bastante óbvia e já abordada pela crítica ao longo dos anos, aliás, o próprio romance de Melville é repleto de referências a Jonas, jamais negando a similaridade entre a sua história e a do cânone bíblico.
No entanto, o ponto realmente interessante dessas releituras tão comuns na literatura moderna não são as similaridades entre as histórias, mas as suas diferenças que fazem com que Moby Dick não possa seguir os mesmos passos do livro de Jonas, tentar desvendar o que mudou no pensamento coletivo ao longo desses milênios para que surgissem personagens com a mentalidade de Ishmael e Ahab em detrimento ao modo de pensar de Jonas é o grande ponto chave da leitura de Moby Dick como uma releitura do livro bíblico.
Assim, tal qual o objetivo de toda releitura é trazer temas universais e atemporais a um contexto mais contemporâneo, este trabalho vai buscar num plano mais amplo encontrar onde essas discrepâncias entre as duas narrativas revelam as diferenças do homem do século XIX, muito parecido ao homem dos dias atuais, em comparação ao homem da era pré-cristã.
2. Um novo modo de ver a religiosidade na literatura do século XIX
Em 1827, o escritor e filósofo francês Victor Hugo escreveu seu famoso prefácio da peça Cromwell, de sua autoria, e ditou as regras de um novo modo de se produzir literatura, onde o autor não precisa se voltar para os moldes clássicos, onde se valoriza a liberdade na escolha de temas contemporâneos e não a retomada de mitos e estilos homéricos, onde se privilegia a forma de escrita em prosa, mais flexível e de fácil compreensão, enfim, um modo de escrita mais próximo do leitor comum, menos erudito, fica claro que as artes só estavam abertas dessa maneira para mudanças tão radicais porque a sociedade passava por igualmente radicais transformações.
A Revolução Industrial iniciada no fim do século anterior reestruturou toda a forma de trabalho na Europa, agora a vida nos campos perdia terreno para uma verdadeira explosão demográfica nas cidades, as fábricas precisavam de mão-de-obra e a população se viu forçada ganhar salários que desvalorizavam cada vez mais seu trabalho, devido a alta concorrência, as classes sociais se distanciaram gritantemente entre uma burguesia que detinha a produção e o proletariado que recebia pelo seu trabalho.
O Iluminismo que surgiu após o fim da Idade Média já vinha transformando o pensamento coletivo. A religião passa a perder espaço para a ciência assim como a Igreja perdeu grande parte do seu poder ao se separar do Estado. Maquiavel reviu os conceitos de governo e Monarquia; Espinosa revisitou Deus não como um indivíduo paternal observando cada passo de cada homem, mas como uma força geral, existente em todo o universo, assim como em todo ser vivo.
A Revolução Francesa causa a queda da Monarquia e o retorno da democracia baseando-se nos antigos moldes gregos, o que centraliza no povo a escolha de quem irá governar, um golpe derradeiro na influência da Igreja, que antes escolhia as linhagens dos reis e nobres.
A partir desses grandes eventos históricos se nota que a religiosidade como expressão coletiva de pensamento e poder entrou em colapso no século XIX, o cristianismo ainda era a religião predominante na população ocidental, mas agora não dominava todos os aspectos da vida das pessoas, havia também uma realidade científica que ganhava cada vez mais espaço e gerava avanços tecnológicos em velocidade nunca antes vista, uma realidade política onde se discutia as necessidades do povo, a igualdade entre as diferentes raças, e a representatividade dos governantes, e uma realidade filosófica que buscava deixar todo o passado de lado com seus feudos e reis tirânicos, e trazer novos fundamentos para a sociedade baseados na razão e na lógica.
Assim, crer em Deus nunca mais foi algo absoluto e inquestionável como era até então. A racionalidade iluminista montava suas teorias sem a presença dessa figura divina. A Igreja se tornou mais uma formalidade, ir às missas se tornou uma convenção social, e o homem daquele período começou a ter suas dúvidas da existência de uma entidade divina intervindo a todo momento e passou a viver sua vida sem considerar essa intervenção.
Nesse contexto, quando Victor Hugo escreve seu prefácio de Cromwell e abre as portas para uma literatura que trouxesse em si essa nova realidade, as artes já ansiavam por essa transformação, alguns autores já ensaiavam mudanças parecidas baseados na mesma visão de que o mundo estava muito diferente para que a literatura ficasse igual, e apesar de causar uma mudança radical no modo de se pensar e produzir ficção, ela acompanha essas dúvidas do homem da época. Note que esse distanciamento de Deus ainda não é um estado de ateísmo, ainda existe a crença em Deus, porém ela já não é o centro da vida das pessoas comuns e dos personagens que as representam na literatura. Parafraseando o próprio autor francês: existe um abismo entre o homem e Deus.
Vinte e cinco anos depois da publicação desse prefácio, vivendo do outro lado do Atlântico, mas numa realidade igualmente industrializada e mergulhado nessa dicotomia entre a religião e as novas ideias filosóficas, Herman Melville escreve seu clássico Moby Dick que apresenta uma das mais cristalizadas metáforas da transformação do homem de sua época em um ser duplo, entre o religioso e o individualista, como explicaremos adiante.
3. O épico não-pagão: uma tradição cristã na literatura de língua inglesa com John Milton e Melville
Se na França as ideias citadas acima logo geraram obras-primas que deixaram quase que completamente de lado o aspecto religioso, tais como Os Miseráveis, Os Três Mosqueteiros, A Dama das Camélias, etc.; outras linhagens literárias se debruçaram muito mais profundamente nessa questão da falência dos pilares religiosos. A literatura produzida em língua inglesa, por exemplo, passou por um processo mais radical, uma vez que esta literatura mantinha uma relação muito mais próxima do texto religioso, como podemos notar com livros como O Peregrino, de John Bunyan, Os Contos da Cantuária, de Chaucer, ou toda a literatura produzida por jesuítas nos EUA com o objetivo de recontar histórias bíblicas, entre muitos outros exemplos.
A literatura inglesa era tradicionalmente mais religiosa que a francesa, seu cânone é repleto de obras com fundo católico ou protestante e alterar esse percurso foi algo muito laborioso, que não ocorreu imediatamente como na do outro país.
É importante destacar que os ideais levantados por Victor Hugo se baseiam muito no modo de escrever de um autor canônico inglês: William Shakespeare, e que autores mais próximos do estilo shakespeariano tendiam a escrever histórias menos religiosas. Por outro lado, escrever uma obra que se afaste tão completamente desses motivos religiosos seria abrir mão de toda uma tradição que tem como maior expoente ninguém menos que Milton.
John Milton foi um influente poeta inglês do século XVII que produziu Paraíso Perdido, um clássico absoluto composto de doze cantos em estilo de epopeia que narram a batalha entre Deus e Satanás e todo o período da Criação sendo,portanto, uma obra-prima da literatura cristã. Ao mesmo tempo, ao escrever no gênero da epopeia, que sempre teve como uma de suas principais características o uso dos deuses pagãos como personagens ajudando ou dificultando as aventuras dos heróis, Milton produz um híbrido entre o pagão na estrutura e o cristão no conteúdo, uma bela síntese do que a literatura inglesa sempre foi.
Da mesma forma, quando Melville escreve Moby Dick ele apresenta diversas características de uma epopeia (a saga de um herói, uma profecia definindo seu destino, a extensão da narrativa, etc.) e outras tantas que fogem ao gênero e geram um hibridismo (a escrita em prosa, os elementos protestantes, a falta de deuses pagãos como personagens interferindo na trama, etc.).
Portanto, quando surge Moby Dick em 1851, o livro se destaca no centro dessa intrincada tradição da literatura de língua inglesa, ao mesmo tempo se relacionando à vertente mais religiosa e à vertente mais humanista, articulando de forma muito equilibrada conflitos shakespearianos com personagens religiosos, aproximando-se dessas novas ideias propagadas por Victor Hugo e também dando continuidade a uma tradição da sua própria literatura.
Todo esse contexto histórico é importante para que possamos compreender porque neste livro vemos com tanta clareza a narrativa de Jonas, uma história bíblica que retrata a intervenção divina no destino de um homem que tentou fugir da missão dada por Deus, ser desvirtuada em Ahab, uma espécie de anti-Jonas que não admite perder o controle da própria vontade, do próprio caminho e dos seus próprios objetivos, nem que isso o leve à morte.
4. Ahab: O Jonas do século XIX
O livro de Jonas se encontra numa “sessão” da Bíblia denominada de “Livros dos Profetas Menores” devido a curta extensão de suas narrativas em comparação aos quatro livros dos Profetas Maiores.
Em seus quatro capítulos o livro fala sobre o profeta Jonas, que recebeu um chamado de Deus para que fosse até a cidade de Nínive, capital da Assíria, povo inimigo de Israel, alertar a população daquele local de que suas más ações chegaram aos olhos de Deus e o Senhor iria castigar aquela cidade.
Porém, Jonas decide não seguir a ordem de Deus e pega um navio para Társis, mas Deus manda um forte vento contra o mar, Jonas então conta à tripulação do navio que aquela tempestade acontecia porque ele não seguia a vontade divina, e a tripulação o joga no mar, onde Deus prepara um grande peixe que o engole. No capítulo seguinte, dentro da baleia Jonas ora pedindo ajuda, se arrepende de suas ações e se compromete a seguir a missão que Deus lhe deu e ir até Nínive, então o peixe vomita Jonas após três dias e ele segue enfim a missão dada por Deus e vai falar a Nínive como lhe fora ordenado.
No entanto, ao profetizar naquela cidade, Jonas percebe que a população realmente acreditou nele e se arrependeu, o que faz Deus decidir não castigá-los, fazendo assim não se cumprir a profecia de Jonas, o que o deixa revoltado. Por conseguinte, Jonas vai até um deserto a oeste da cidade e faz uma barraca onde espera pelo cumprimento da profecia, o que não ocorre, mas Deus faz crescer uma aboboreira sobre a barraca de Jonas lhe protegendo do sol, e depois Deus a faz secar, o que deixa Jonas muito triste pela aboboreira, então, nos dois versículos finais, Deus diz:
“Tiveste tu compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer, que numa noite nasceu, e numa noite pereceu; E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e também muitos animais? ” Jonas 4:10,11.
Assim, o livro trata da importância de se seguir a vontade divina. Aqui, Deus é uma figura próxima, pessoal, que conversa diretamente com o protagonista, e que lhe indica o caminho a seguir. E a lição que Jonas tem é a de que, apesar de ele ter a liberdade de seguir um caminho diferente da vontade de Deus (ir para Társis), no final o seu livre-arbítrio é relativo, pois ele sofre graves consequências se decidir seguir uma rota diferente da que lhe foi ordenada.
A baleia entra nessa narrativa para levar Jonas a refletir sobre seu ato de desobediência e por fim voltar ao caminho que foi imposto a ele pelo Senhor. Note que aqui, a individualidade de Jonas existe apenas enquanto ele cumpre o que Deus já planejou para ele. Ao fazer um caminho diferente para Társis, ele é punido numa espécie de purgação pela tempestade e pelo grande peixe, ele se molda então para que seu livre-arbítrio siga a vontade de Deus. Ser engolido pelo peixe o leva do estado de um homem que quer seguir seu próprio caminho para Társis, para o estado de um homem que quer fazer a vontade de Deus e ir até Nínive.
Em vários sentidos podemos concluir que Deus é o protagonista da narrativa, e não Jonas. Deus indica o caminho que o personagem deve seguir, ao tentar desviar desse caminho Jonas é punido até voltar para a direção imposta. Ao falar da profecia para o povo de Nínive Jonas espera que ela realmente se cumpra, mas isso não está a seu alcance e Deus decide não cumpri-la, modificando outra vez as expectativas de Jonas.
Vemos inclusive como o livro se encerra com uma fala de Deus, e não sabemos qual a reação de Jonas a essa fala, se ele aprende algo com ela, se concorda ou não, se outra vez vai deixar para trás suas próprias convicções e concordar com a vontade e o modo de pensar de Deus, e isso ocorre porque realmente Jonas é secundário, apenas uma ferramenta para Deus passar sua mensagem ao povo de Nínive. Assim como Deus manda o peixe para a missão de engolir Jonas, antes Deus havia mandado Jonas para a missão de falar ao povo de Nínive.
Essa perspectiva teocêntrica é perfeitamente natural considerando o período em que foi escrito, a vontade soberana de Deus (ou dos deuses, no caso dos povos politeístas) sobre a dos homens é a base do pensamento humano desde o início das sociedades até o período do século XIX sobre o qual nós já abordamos.
Toda essa interpretação é absorvida em Moby Dick e sintetizada no sermão do pastor Mapple, que pode ser condensado na sua célebre frase, no capítulo 9 da narrativa: “E para obedecermos a Deus temos que desobedecer a nós mesmos; é nesta desobediência de nós mesmos que consiste a dificuldade de obedecer a Deus.” (p. 52)
Porém, esse modo de pensar não condiz mais com a realidade do século XIX, em um capítulo que também se passa numa capela dois capítulos antes, o próprio narrador Ishmael deixa bem claro em uma divagação belíssima, que agora já não viviam mais no tempo da vontade divina como prioritária:
“Parece-me que estamos profundamente equivocados a respeito dessa história de Vida e Morte. Parece-me que, olhando para as coisas espirituais, somos como ostras observando o sol através da água e achando que a água espessa é o ar mais sutil. Parece-me que meu corpo é a parte mais insignificante do meu ser. A bem dizer, levem meu corpo, levem-no, não sou eu. E então, três vivas para Nantucket; que venha um navio naufragado e um corpo naufragado, pois naufragar minha alma, o próprio Jove não pode.” (p. 48)
A individualidade dos homens, sua liberdade e seu livre-arbítrio passam a ser mais importantes que a suposta “vontade divina”. Assim o teocentrismo ficou para trás na narrativa de Moby Dick. E mais evidente do que em Ishmael essa mudança é evidente em Ahab, o capitão do navio.
Ahab já tinha encontrado a baleia Moby Dick antes da jornada narrada por Ishmael começar, e nesse primeiro encontro a baleia branca tomou sua perna, a partir daí ele passa a persegui-la de forma obsessiva, mesmo tendo uma profecia dizendo que essa jornada o levaria à morte.
Ahab está tão ciente da necessidade de deixar a baleia para trás se quiser manter a própria vida quanto Jonas estava ciente de que deveria seguir para Nínive para interromper a tempestade em alto-mar, porém o capitão do Pequod se nega a se curvar a essa vontade maior, se nega a tal ponto que no capítulo 39 ele apresenta um monólogo que é a contraposição extrema da oração feita por Jonas na barriga da baleia:
“O que ousei, desejei; e o que desejei, fiz! Pensam que sou louco – Starbuck pensa; mas sou demoníaco, sou a própria loucura enlouquecida! A loucura varrida, que só se acalma para entender a si mesma! Dizia a profecia que eu seria destroçado; e – é isso! Perdi esta perna. Agora profetizo – mutilarei meu mutilador. E, assim, profeta e executor serão um só. É mais do que vós, grandes deuses, jamais fostes. Faço pouco e rio de vós, jogadores de críquete, pugilistas, surdos Burkes e cegos Bendigoes! Não farei como as crianças quando falam com os valentões, – Vá procurar alguém do seu tamanho; não me espanque! Não, vós me derrubastes, e estou em pé outra vez; mas vós fugistes, vós vos escondestes. Saí de trás de vossos sacos de algodão! Não tenho uma arma comprida para vos alcançar! Vinde, Ahab vos saúda; vinde para ver se podeis me desviar! Desviar-me? Não, não me podeis desviar, a não ser que vos desvieis antes! Eis aqui o homem. Desviar-me? O caminho de minha resolução é feito com trilhos de ferro, onde minha alma está encarrilhada. Sobre desfiladeiros insondáveis, através dos interiores áridos das montanhas, sob o leito das torrentes, avanço infalivelmente! Nada é obstáculo, nada me detém nessa estrada de ferro!” (p. 163-164)
Aqui ele não teme a morte, ao contrário de Jonas que temeu a tempestade e depois temeu morrer no peixe, Ahab sabe que uma morte o espera, mas não sai do caminho que ele mesmo escolheu para si, não aceita deixar de perseguir Moby Dick.
Ahab é o protagonista da sua própria história, ele escolherá seu caminho em detrimento a qualquer adversidade, ele sabe das forças maiores do que ele e que podem exterminá-lo sem dificuldade, como Deus ou a baleia, mas não os teme. A individualidade, a vontade pessoal de Ahab é mais importante até que sua própria vida. Nesse sentido, Ahab é também figurativamente o capitão do navio e não um tripulante escondido no porão como Jonas.
Deus, na narrativa de Moby Dick, se torna uma figura mais impessoal, que aparece nos sermões dos pastores ou nas religiões pagãs, muito mais como uma crença, uma energia, uma essência cósmica que move todas as coisas, que um ser celestial que conversa com as personagens e lhes diz o caminho a se seguir, e nessa visão temos uma referência a filosofia de nomes como o já citado Espinosa e outros iluministas que defendiam visão semelhante.
Assim, no romance a baleia não representa uma ferramenta para fazer Ahab voltar ao caminho correto, o caminho que se espera dele, pelo contrário, a baleia é Társis, ir até ela é o erro que Ahab precisa cometer porque é da sua vontade, e a sua vontade é tudo o que importa.
A baleia Moby Dick funciona como a tentativa de Ahab de demonstrar que é dono de si mesmo, maior que a profecia que dizia que ele morreria ao confrontá-la novamente.
Vale mencionar também que no livro de Melville as coisas já são tão definidas quanto em Jonas, as profecias estão ali, porém não foram dadas por um Deus que as explicou passo a passo para o seu profeta. Se no livro de Jonas, Deus podia desistir de cumprir a própria promessa por ser um indivíduo pessoal, quase humanizado dentro da narrativa, com a possibilidade de se tomar uma atitude tão humana quanto se arrepender da sua profecia e desistir dela; em Moby Dick essa força universal impessoal não desiste da profecia, uma vez que não pensa como um ser humano, Deus aqui é representado como a Natureza espinoziana, regida por leis invioláveis, lógicas e racionais.
A lógica de que um homem não venceria a furiosa baleia branca só seria quebrada se acontecesse um milagre, se estivéssemos diante de uma narrativa de Davi e Golias em que Davi tem o apoio milagroso de Deus e, portanto, é totalmente cabível que vença o gigante, mas não estamos numa narrativa assim, os personagens de Moby Dick estão sozinhos, não recebem um auxilio de um ser superior, Deus não tem a fala final do livro para explicar metaforicamente as suas ações como em Jonas. Tudo o que existe para a tripulação do Pequod é a compreensão lógica e racional do mundo, muitas vezes beirando o cientifico nas descrições detalhadíssimas de Ishmael, e, seguindo esse raciocínio lógico, é previsível que o homem perca para a baleia, que Ahab morra sem conseguir satisfazer sua obsessão, como racionalmente se podia prever. Sem a intervenção divina, Golias vence. Como diria Espinoza: Milagres não acontecem.
Portanto, o livro Moby Dick pode ser interpretado como uma releitura do livro de Jonas, a trama semelhante é subvertida pelo autor para gerar paralelismos o tempo todo com o texto bíblico, mas trazendo seus eventos para a realidade do século em que foi escrito, e demonstrando como o mesmo conflito “vontade humana x vontade divina” seria desenvolvido na realidade social e cultural da Idade Contemporânea.
Referências Bibliográficas
MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A Baleia. Tradução de Irene Hirschi e Alexandre Barbosa de Souza. Ed. CosacNaify. São Paulo, 2013.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e notas de Celia Berrettinni. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
PUGLIESSE, Natassja Saramago de Araújo. Deus, Natureza e Substância: Estudos sobre Spinoza e a escolástica. p. 81-88. REVISTA Conatus – Filosofia de Spinoza – Vol. 3 – n. 5 - Julho 2009.