Análise do livro 1984, de George Orwell

A poesia como último refúgio da memória em 1984, de George Orwell.

Jedielson SANT’ANA

*Por opção estética e estrutural, inerente e essencial para a compreensão do conteúdo, o texto a seguir não segue na completude as regras de formatação acadêmica padronizadas pela ABNT.

quando tudo jaz esquecido

da Novalíngua o Amor extinto

Liberdade, Igualdade e Direitos

também eram proibidos, dito e feito,

o que poderá restar, inconsciente, na memória

das pessoas apresentadas nessa história?

pouca coisa permanece a Smith, o protagonista

oprimido, com vigilantes telas sempre à vista.

Escondido, escreve os temores de sua mente

ao lembrar de uma canção de antigamente

pouco importa todo esforço e mentiras do Partido

da cantiga não esqueceu, tão somente do sentido

a poesia, essa força que se escreve, que se canta

Estado algum apaga, tortura não arranca

é que a rima, mesmo quando em canções de criança,

insistente como a vida, atém-se na lembrança

a própria origem da poesia

tinha esse intento, a primazia

produzida para transmitir longas mensagens

atravessava desertos, mares e paisagens

e servia para cantigas líricas das mais belas

mas também para informar, ou divertir plateias

ou quem sabe para analisar um romance

onde escrever é proibido; poesia, sem chance.

o escritor Augusto de Campos nos traz isso

no seu fascinante livro: O Anticrítico

em que escreve, resolvendo nosso dilema:

“a melhor crítica de um poema é um poema”

a melhor arma da revolta de Winston

era a cantiga Oranges and Lemons:

“Oranges and lemons

Say the bells of St. Clement’s

You owe me five farthings,

Say the bells of St. Martin’s

When will you pay me?

Say the bells at Old Balley.

When I grow rich,

Say the bells at Shoreditch

When will that be?

Say the bells of Stepney

I do not know,

Says the great bell at Bow”

não que fosse derrubar os grandes prédios

triangulares e secretos dos Ministérios

ou lançar mísseis de napalm contra o vento

vencendo todos os policias do pensamento

mas de forma mais sólida e constante

lembrar-se da cantiga era importante

pois num tempo em que esquecer era preciso

engolir gim, duplipensar, forçar sorriso

a cantiga docemente o lembrava

de uma outra Londres, e como funcionava

note como nela aparecem catedrais

símbolos das antigas religiões ocidentais

os prédios ainda existem, mas calados

não incomodam os defensores do Estado

exclui-se a função da igreja dos registros oficiais

e a ideia de Deus já não existe mais

mas Winston lembra das catedrais da canção

e isso o faz vencer os planos do Grande Irmão

também com essa música nós percebemos

que Smith não é o único a lembrar de Orange and Lemons

outros sempre vão dizendo ao longo da trajetória

qual a próxima rima, qual a próxima história

nesse ponto o poema o humaniza ao lhe mostrar

que mais gente recorda como era esse cantar

uma das funções mais nobres da arte,

como das religiões, é o religar-se

um com o outro, compartilhando os mesmos anseios

ignorando os esforços do Partido em lhes deixar alheios

outra coisa a se considerar na rima é a oralidade

marca da poesia popular, muito forte nas cidades

que não raro é desprezada como forma menor

aqueles poemas que até crianças sabem de cor

porém, a poesia que resistiu foi justo essa

não a extensa epopeia sofisticada e pregressa

de certa forma neste livro a poesia está nua

e não se prende no papel, não é mera tinta crua

a poesia que resiste está na boca da população

não importa que o Ministério da Verdade diga “não”

George Orwell, o autor, sabia bem disso

na sua escrita, a clareza é um compromisso

não à toa é um dos autores mais conhecidos

mesmo com enredos sempre tão doídos

mais importante que ter um bom livro

ele sabia que era ter um livro sendo lido

e que se um dia seu país, o Reino Unido,

caísse na armadilha de deixar um só Partido

sua obra seria certamente a primeira a ser censurada

e diante do Rio Tâmisa a pilha de livros queimada

por isso tão necessário que todos conhecessem

a Oceania terrível retratada no romance

e que levassem consigo da maneira mais pura

a história de Winston, Syme, O’Brien e Júlia

pois apesar de soar mero trabalho de fabulação

mil novecentos e oitenta e quatro é também exatidão

mesmo no mundo real, às vezes o Estado

quer censurar a arte, mudar os fatos

e não me espanta que ao dizer o que digo

este texto meio lúdico também corra perigo

num país antes visto como paraíso dos trópicos

hoje em chamas feito cenário distópico

Por isso mesmo esse ensaio foi escrito desse jeito:

A poesia é mil vezes mais forte que o esquecimento.

ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner, Heloísa Jahn. São Paulo: Compainhia das Letras, 2009.

CAMPOS, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Compainha das Letras, 1987.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 26/04/2020
Código do texto: T6929206
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