A apresentação do Quixote, Miguel de Cervantes
A apresentação do Quixote, Miguel de Cervantes
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Don Quixote de la Mancha orçava cinquenta anos. Não se sabe nada sobre seu passado. Cervantes não nos conta como teria sido a juventude do cavaleiro da triste figura. Pode ser que fosse um fidalgo, o que denotava nobreza, ainda que fosse pobre e que vivesse em uma terra também muito pobre. Era pobre mas tinha tempo livre, ocioso, o que o fazia o mais rico dos homens. Consumia seus haveres com comida, vestimentas e com os livros que devorava.
Nesse tempo livre de que dispunha leu e releu todos os livros de cavalaria. Leu muito. Em leituras se enfrascou. Foi sua perdição. Segundo Cervantes, [o Quixote] “do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”. Mas é também o início de sua salvação, de onde sua redenção, porque não se salva quem não se perdeu. Lia os livros de cavalaria com muito empenho e prazer maior ainda. Memorizou passagem que o definia no que tinha de mais (ou de menos) essencial: “a razão da sem razão que à minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queira de vossa formosura”. Nos dizeres de um insuspeito brasileiro (San Tiago Dantas) a literatura que o Quixote consumia era “o passatempo dos preguiçosos e também o devaneio das pessoas mais frívolas”.
Discutia com o padre local quem seria mais adestrado e valente cavaleiro: um tal inglês ou o próprio Amadis de Gaula. Este último era um herói de novelas de cavalaria e teria vivido suas aventuras na Península Ibérica. Suas façanhas eram compostas e reproduzidas desde o século XI. O padre local estudara em Siguenza, em uma universidade de prestígio de menos.
Quixote tinha poucas roupas. Calças de veludo para as festas. Sua casa era gerida por uma ama, que contava quarenta anos. Havia também uma sobrinha, com metade da idade da ama. E havia também um rapaz, que selava o cavalo. Quixote era “rijo de complexão, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador e amigo da caça”. Por ser seco de carnes presume-se que possuía um temperamento colérico, à luz do que entendia a medicina medieval. Alimentava-se frugalmente: restos de carne de cabrito picada com cebola e vinagre. Às sextas-feiras comia lentilhas. Alimentava-se também de “lutos e mágoas”, o que pode nos remeter a ovos com toucinho gastronomia bem espanhola, como se vê em um dos filmes de Luis Buñuel.
Cervantes concedia que não se sabia o nome exato da estranha figura: Quijada, Quesada, Quijana? Esses nomes remetiam a “mandíbulas” ou a “tortas de queijo”. Depois de oito dias pensando o consumidor de livros de cavalaria escolheu Quixote. E porque ao cavaleiro era conveniente se pospor ao nome a pátria (como Amádis de Gaula), tornou-se Quixote de la Mancha. Quixote pode nos remeter a peça de armadura que socorre a coxa, que de algum modo nos lembra um pequeno caixote. Sabe-se no fim da narrativa que seu nome era Alonso Quijano. Para Cervantes, o nome era o menos importante, desde que não se afastasse da verdade. Cervantes é irônico. E Quixote era contemplativo. Um sonhador. Enlouqueceu na maturidade. Haveria tempo para recobrar a razão?
Decidiu tornar-se um cavaleiro andante a cata de aventuras. Buscaria prestígio e serviria a pátria. Abominava uma glória passageira, contentava-se, tão somente, com a honra que transcendesse à eternidade. Combateria as injustiças. Enfrentaria todos os perigos. Vasculhou e encontrou as velhas armas e armaduras que jaziam em sua casa, “esquecidas a séculos”. Obcecado, mergulhou mais ainda nos livros de cavalaria, esquecendo-se da administração da fazenda.
Como cavalou adotou o seu Rocinonte, cujo nome pensou por quatro dias. Tinha que o nome de seu cavalo era alto, sonoro e significativo. Ainda que verdadeiramente fosse apenas pele e osso “tantum pellis et ossa fuit”, Quixote sabia que o Rocinonte era um cavalo ainda mais portentoso do que o célebre Bucéfalo, do não menos célebre Alexandre, que foi rei dos macedônios.
Faltava-lhe então uma amada. Cervantes nos conta que Quixote sabia que um cavaleiro sem amada é uma árvore sem flores e plantas ou um corpo sem alma. É um nada. Sua escolha recaiu em Aldonsa Lourenzo, uma criadora de porcos, que rebatizou como Dulcineia del Toboso, nome que lhe parecia musical, significativo e peregrino.
Quixote está pronto para enfrentar sua missão. Na imagem do mais espanhol dos intérpretes do Quixote, Miguel de Unamuno,“sua linhagem começava com ele mesmo”.