"Guerra sem fim" de Joe Haldeman: a ficção científica utilizada como metáfora para a vergonhosa Guerra do Vietnã

Nota inicial: a presente resenha possui vários spoilers.

Livro “Guerra sem fim”, clássico da ficção científica escrito pelo estadunidense Joe Haldeman. A obra é influenciada diretamente pelo tema da Guerra do Vietnã, na qual o autor serviu como soldado, chegando a ser ferido.

A GUERRA DO VIETNÃ

A citada e conhecida Guerra do Vietnã foi um conflito armado ocorrido entre os anos de 1955 e 1975, constituindo o capítulo mais vergonhoso da Guerra Fria, quando Estados Unidos e União Soviética disputavam com sua influência cada canto do mundo. O Vietnã era dividido em duas nações: o Vietnã do Sul, apoiado pelos EUA, e o Vietnã do Norte, apoiado pela URSS. Os estadunidenses tiveram sua maior derrota bélica, perdendo mais de 50 mil soldados em combate. Os sobreviventes, ao retornarem, incapacitados fisicamente ou não, sofreram com o repúdio de uma sociedade que já não apoiava a empreitada no sudeste asiático, influenciada por revelações de crimes de guerra cometidos pelas tropas contra a população civil vietnamita. Durante o conflito, os EUA usaram bombas incendiárias (como a Napalm); realizaram a pulverização de armas químicas (como o agente laranja) que, nas décadas seguintes, provocou doenças e más-formações em crianças do Vietnã. Os mortos totais pela guerra estão na casa de milhões.

A GUERRA CONTRA OS TAUREANOS

Na trama do livro, conhecemos e acompanhamos William Mandella, soldado das tropas de defesa do planeta Terra. Em meados da década de 1990, ele é recrutado para servir na guerra contra os taureanos, raça alienígena com o qual os terráqueos entram em conflito. Para chegar até o local do conflito, as tropas do nosso planeta viajam através dos colapsares, um fenômeno espacial descoberto pelos humanos e que se assemelha bastante com o conceito popular de “buraco de minhoca”, popularizado por livros de físicos como Stephen Hawking, e que constituem ‘’túneis” que permitiriam ir de um ponto até outro do espaço sideral, dobrando o chamado espaço-tempo. Na obra de Haldeman, contudo, os colapsares provocam um efeito colateral que é a dilatação do tempo, fazendo com que o tempo transcorrido dentro das naves seja mais “lento” que o tempo “real” do universo. O resultado disso é que, quando Mandella retorna para casa após dois anos de campanha, quase trinta anos se passaram na Terra. E, quanto mais longe os humanos viajem para lutar com os taureanos, maior é a dilatação do tempo, fazendo com que os soldados fiquem décadas e, até mesmo, séculos distantes do nosso planeta.

A ANALOGIA ENTRE A GUERRA REAL E A DA FICÇÃO

O grande mérito de “Guerra sem fim” é a analogia que o relato fictício da obra faz com os acontecimentos reais da Guerra do Vietnã. Haldeman, como já dito anteriormente, por ter sido soldado no conflito, pôde estabelecer essas relações de forma perceptível, mas não explícita, na trama. Da mesma forma que os soldados estadunidenses foram convocados para um conflito contra um país desconhecido (assim era o Vietnã até 1955 e, provavelmente, ainda o é nos dias atuais), Mandella e seus colegas de front quase nada sabem dos taureanos e de seu planeta. O ambiente perigoso e inóspito dos planetas alienígenas pode ser comparado com as florestas e vilarejos vientnanitas, cheios de armadilhas deixadas pelos vietcongues. As mortes de colegas de Mandella, de forma pueril, desnecessária, durante os treinamentos, por exemplo, serve como uma analogia para as mortes reais dos combatentes estadunidenses que perderam suas vidas numa guerra em que, muito provavelmente, não acreditavam. O próprio estopim do confronto com os taureanos é nebuloso, tal como era o conceito de Guerra Fria e as motivações reais da guerra para os soldados. Por que atravessar o planeta, invadir, matar e destruir a população de um país asiático que nunca atacaram os Estados Unidos em seu território? Por que atravessar a galáxia, através dos colapsares, para matar e destruir uma raça alienígena que não tinha atacado o planeta Terra diretamente?

Ao retornarem para os Estados Unidos, os soldados sofreram com o preconceito da população, cujo sentimento antiguerra vinha num crescente constante, influenciado pela imprensa que divulgava as derrotas e atrocidades. Isso tornava o retorno à nação mais difícil do que a vida no front, onde havia o sentimento de grupo, de irmandade, com cada um sendo útil dentro da tropa. Quando Mandella retorna, décadas se passaram. A Terra já não é mais a mesma, mudou com a passagem dos anos provocada pela dilatação do tempo, é mais hostil com ele. A ambientação não é possível. O dinheiro que a guerra lhe rendeu é insuficiente para lhe garantir uma vida plena, tranquila. A vida só faz sentido no front, onde ele é útil. O sentimento de heroísmo só é viável quando aplicado aos colegas de tropa, tanto no Vietnã, quando no ambiente alienígena. O assassinato do alienígena sem saber se ele é uma ameaça real seria uma possível analogia para o assassinato de civis, guardadas as devidas proporções.

A guerra saía das fronteiras do Vietnã e invadia os países vizinhos como o Laos, Camboja e Tailândia, com resultados desastrosos. Outras nações como a China, Austrália, bem como Coreia e Alemanha (ambas as nações divididas pela mesma Guerra Fria) também se viram envolvidas no conflito, apoiando um ou outro lado, todos com resultados questionáveis. Na obra de Haldeman, as nações também se unem, sob um exército planetário. E, da mesma forma que a Guerra do Vietnã se estendeu por anos devido a interesses políticos e econômicos de difícil assimilação para as tropas, assim ocorre no livro, com a economia planetária totalmente condicionada ao conflito com os taureanos. A Terra precisa da guerra alienígena para funcionar. Os EUA precisavam (e ainda precisam) da guerra, como ferramenta, para manter sua hegemonia no mundo.

É também trabalhado por Haldeman o sentimento de angústia pela possibilidade de não rever os parentes queridos. Da mesma forma, a sensação de desconforto ao não ser bem recebido pelos parentes, influenciados pela opinião pública motivada pela vergonha da guerra, serve como uma analogia para os parentes de Mandella, que se tornam um tanto “desconhecidos” para o protagonista, devido à passagem dos anos, das décadas.

Por fim, o próprio conceito de dilatação temporal serve como uma analogia interessante para a longevidade do conflito real que inspirou a história.

HOMOFOBIA E SUPERFICIALIDADE

Há trechos incômodos em “Guerra sem fim” e, aqui, isso não representa um mérito devido ao relato cru, tendo em vista a Guerra do Vietnã, que serviu de inspiração. O incômodo é provocado por falhas morais do próprio Haldeman. Há, em trechos pontuais do livro, de forma bem perceptível, uma boa dose de homofobia. O protagonista William Mandella se sente muito incomodado com a presença de homossexuais na tropa e deixa claro isso nas opiniões que compartilha com pessoas próximas a ele. Em determinado momento do livro, a homossexualidade se torna a regra no planeta Terra, como uma ferramenta interessante para controlar a super população do planeta e tal status quo tortura mentalmente Mandella.

Nos anos seguintes à publicação original da obra, Haldeman chegou a pedir desculpas pelos trechos homofóbicos contidos no livro. Entretanto, vale a pena uma reflexão: por que há tanta homofobia oriunda do ambiente miliar, seja nas forças armadas dos Estados Unidos, seja em muitas outras, incluindo o Brasil? Frequentemente aparecem nos noticiários reportagens de militares vítimas de homofobia. No Brasil, especificamente, por exemplo, há ONGs dedicadas a denunciar tais casos. Se, nos dias atuais, as Forças Armadas tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil têm se esforçado para desestimular comportamentos e práticas homofóbicas, nem sempre foi assim. A nítida impressão é que, entre os militares de algumas décadas atrás, a homofobia era a regra. Haldeman é oriundo desse ambiente, onde a intolerância com homossexuais era socialmente aceita e motivada. Interessante notar como o conceito de masculinidade tóxica se manifesta num ambiente repleto de homens, jovens e com hormônios em efervescência, que convivem durante meses sem uma única presença feminina. A homofobia surge, talvez, como uma reação a uma sexualidade frágil alicerçada em preconceitos de gênero.

Naturalmente, como heterossexual, posso estar cometendo alguma imprecisão nessa opinião. Agora, para um leitor do século XXI como eu, certas passagens não podem ser naturalizadas e aceitas, sem as devidas ressalvas. Haldeman, como dito, percebeu que os tempos são outros e se desculpou.

Outro detalhe que incomoda em “Guerra sem fim” é a superficialidade da analogia. Por mais que os comparativos sejam interessantes, que a alegoria em si seja rica, é inegável que não há um aprofundamento quando lembramos do material-fonte. A Guerra do Vietnã foi um conflito sangrento. Milhões de civis inocentes foram covardemente assassinados pelas tropas dos Estados Unidos, do Vietnã do Sul e aliados. Todo esse massacre é pouco explorado na trama do livro. E é ignorado, quase que completamente, os crimes de guerra que os Estados Unidos cometerem durante o conflito, tais como limpeza étnica (incluindo aí estupros e infanticídios) e o uso de armas químicas, que envenenaram a população civil por várias gerações.

Talvez a vergonha, como soldado, de ter participado de algo onde ocorreram tais atrocidades, tenha levado Haldeman a uma abordagem mais voltada para o indivíduo em si, a forma como ele encarou o conflito. É bem provável que Haldeman não tenha tomado partido em crimes de guerra e, por isso, baseou sua obra na sua experiência pessoal, bem mais “amena”, por assim dizer. Seria uma abordagem sincera e válida. Entretanto, para mim, soa incompleto, como se faltasse algo mais, que tornasse mais crível a brutalidade do confronto com os taureanos e que, da mesma forma, me fizesse ter empatia pelo lado dos alienígenas que, de forma compreensível (mas covardemente pouco explícita), foi lançado “sem querer” na guerra, tal como os vietnamitas.

CONCLUSÃO E DICAS

“Guerra sem fim”, seja pelas analogias e reflexões que proporciona, seja pela criatividade de suas ideias, merece um lugar de destaque dentre os clássicos da ficção científica. É uma ótima leitura, ainda que possua limitações que impedem sua excelência.

Para quem se interessou pela abordagem da obra, vale a pena conferir um outro livro que vai na mesma linha, porém, com um pouco mais de coragem e uma dose maior de humor negro, que é “Matadouro nº 5”, do também estadunidense Kurt Vonnegut.

Por fim, vale citar que o livro de Haldeman teve seus direitos de adaptação cinematográfica adquiridos, já há alguns anos, pelo cineasta Ridley Scott, conhecido por seus bons filmes de ficção científica. “Guerra sem fim” já foi adaptada para o teatro e, em meados de 1988, foi adaptada para os quadrinhos, nas mãos do artista belga Marvano.

NOTA: 4/5 (ótimo).

FICHA: HALDEMAN, Joe: tradução de Leonardo Castilhone. Guerra sem fim. São Paulo: Landscape, 2009, 304 páginas. Título original: The forever war.

P.S.: Livro lido em outubro de 2019. Resenha escrita em 2020.

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 13/04/2020
Código do texto: T6916294
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