Resenha do livro Cavalos Roubados, Per Petterson
No final de 2019 me envolvi com a leitura de Cavalos Roubados (2010) e logo nas primeiras frases me encantei. Intrigado com a escrita lenta e cuidadosa do norueguês Per Petterson, que nesta obra lida cuidadosamente nos detalhes da vida de Trond Sander, demorei compreender qual seria o norte possível do romance. Agora, depois de muito escrever e reescrever este texto, busco compartilhar algumas chaves de leitura com aqueles que, assim como eu, ficaram estarrecidos com a composição da obra (ou, melhor: compartilho este texto como possível resenha do livro para aqueles que estão buscando novas leituras).
Há muitos e importantes detalhes (que fazem parte também do estilo do autor) para a leitura da obra. Os fatos devidamente colocados; o silêncio firme de Trond Sander; sua vida retirada – não como um eremita, mas como um homem que aceita ter vivido tempo suficiente em sociedade –; seu carinho incondicional por Lira, cadela adotada do velho Trond, e por Dickens, consagrado romancista. Tudo isso em meio às lembranças do verão de 1948, e justo "aquele" verão. Tais lembranças que emergiram no meio da noite quando Trond, levado por uma sensação estranha, encontra e cumprimenta Lars, seu vizinho mais próximo, pela primeira vez.
Estas lembranças, por sua vez, guardam uma mistura de traumas e experiências com o mundo – que não deveriam vir à tona, diga-se de passagem. Uma intensa e rápida passagem do jovem Trond para a vida adulta. A trama enlaça as lembranças daquele verão com a vida retirada do protagonista, mostrando a relação deste com seu pai em meio à uma dura e arriscada empreitada: derrubar abetos (trabalho que é feito junto a Jon e sua família: pai, mãe e “dois” irmãos); além dos trabalhos para o velho Barkald, a boa amizade com Franz, e os desejos de Trond, que começa a descobrir as potências do corpo. A lógica da empreitada parece simples: derrubar, empilhar e levar os abetos rio abaixo pela correnteza, fazendo-os chegar à madeireira.
O que para o jovem Trond era apenas um trabalho no incompreensível mundo pós-guerra, para seu pai não aparentava ser nada daquilo. Não parecia estar com a cabeça no lugar. Nestas densas páginas de cavalos roubados, inclusive, não compreendemos por completo a figura do pai (melhor: eu não compreendi, assim como não compreendia a figura do meu pai quando tinha a jovem idade do protagonista). Tudo é construído em meio a uma obscura lacuna que emerge entre os dois personagens. Um filho que projeta no pai todas as expectativas possíveis, todas as palavras possíveis; e um pai silencioso, que às vezes, consumido por completo pelo mundo, se retira à beira do rio, noutra dimensão da existência, para ver a correnteza cristalina, profunda e incontrolável... Espelho próprio da nossa frágil vida.
O lance lento do livro opera como os parágrafos acima: um capítulo para a retirada vida de Trond, um capítulo para o verão de 1948. As imagens “espelhadas” em ambos os planos da existência mostram a profundidade e as silenciosas cicatrizes dos traumas herdados (ou construídos) pelo protagonista. O cheiro da madeira que impregnou nas narinas de Trond, assim como sua própria relação com a madeira; o silêncio, quando muito poucas palavras; a praticidade do pai e a imagem do rio que percorre a obra toda. No verão de 1948, com o rio que se estende largo, cristalino, forte e vigoroso, com correntezas que projetam o fluxo do tempo, tempo em que tudo acontece sem que possamos ter controle ou compreensão completa dos fatos; no “atual”, início do novo milênio, quando Trond, que há pouco perdera a esposa, passa se dedicar à vida só, com suas leituras e caminhadas religiosas até o “lago dos cisnes”.
Tudo nesta grandiosa obra de Petterson chamava a imagem do meu pai. Lembrava muito dele enquanto lia, deve ser por isso que cortei a leitura diversas vezes, angustiado, preocupado, quieto; deixei-me levar pela imagem do jovem Trond nas proximidades da grande fazenda de Barkald, nas intimidades não-ditas da sua amizade com Jon, e no silêncio confiante que mantinha com seu pai, no qual, mesmo sem uma única palavra, entendiam todos os afetos e potências que atravessavam o que construíram naquele tempo.
Aqueles que com carinho leram A Terceira Margem do Rio, conto de Guimarães Rosa, sabem das forças e potências que intercedem as relações pai e filho, penso eu. Percebem que, em uma relação paternal emergem responsabilidades que não são nossas, assim como as herdamos, por vezes, sem pedi-las, sem saber por que acontece ou como acontece. Em ambos os planos, entende-se quão misterioso é compreender o silêncio de um pai num momento difícil, quão amargo é realizar uma tarefa sem uma única palavra, ou divertir-se por um momento com ele sem entender as preocupações e os pensamentos que o consomem. Acredito que, carregando firme e forte a imagem do meu pai na minha vida, neste livro quase encontrei parte inconsciente do meu sujeito.
Por fim, para deixar subentendida a cereja do bolo, uma figura que não anunciei (não quero dar mais spoilers), gostaria de sugerir cuidadosa questão – nota importante para o único diálogo sobre Dickens: quem mais poderia ser o personagem principal da nossa história senão nós mesmos? Enfim, como aparece no livro, “se serei o herói de minha própria vida ou se esse lugar será ocupado por outra pessoa estas páginas mostrarão”. Ora, não sabemos ao certo o quanto (e como) nossos traumas nos possuem, ou o quanto nossos traumas compõem com nossa miserável existência. Entretanto, na pior das hipóteses, não temos nem como abandoná-los.
As decisões de Trond após o fim do verão de 1948 falam um pouco sobre a dificuldade de lidar seriamente com o que somos e com o que compomos. Sua retirada, seu silêncio, seu comportamento... Nada disso é coisa de um simples velho eremita, mas tudo é parte de uma formação integral “forçada” do ser humano, na qual nem mesmo as despedidas mais simples podem ser esquecidas.
Para os entusiastas do cinema, o filme Cavalos Roubados (Out Stealing Horses), dirigido por Hans Petter Moland, está fresquinho (2019), e mantém uma fidelidade quase impecável à obra de Per Petterson. No mais, uma única sugestão estética (paixão paralela a obra que me tocou profundamente): quando conheci esta obra, casualmente me deparei com Philharmonics (2010), primeiro álbum da dinamarquesa Agnes Obel. Compõem bem um com o outro, a música auxilia na compreensão do texto e mantém um clima gostoso para a leitura. Se irá ler, ouvir e/ou assistir, não sei, afinal “você decide quando vai doer”.
Gustavo.
(31/03/2020)