Olavo de Carvalho - A longa marcha da vaca para o brejo (Trechos)
CARVALHO, Olavo de
A longa marcha da vaca para o brejo: e, logo atrás dela, Os Filhos da PUC, as quais obras juntas formam, para ensinança dos pequenos e escarmento dos grandes, o que restou de O Imbecil, vol. 1. – Campinas, SP: Vide Editorial, 2019. 302p.
Le catholicisme de gauche est un protestantisme de merde. O catolicismo de esquerda é um protestantismo de merda.
Léon Bloy apud CARVALHO, de Olavo. Op., cit., p. 18
É preciso apenas voltar um pouco atrás e esclarecer, em tempo, o título da primeira parte, que de certo modo também se aplica à segunda. O animal nele designado não alude à mãe de quem quer que seja, muito menos à dos valentes jovens acima referidos, e o brejo nada tem a ver com a conduta sexual presumivelmente indecorosa que se atribui, por razões que ignoro, às fêmeas bovinas. A vaca somos nós, o povo, e o brejo é aonde iremos parar ao termo da Longa Marcha. Esta expressão, por sua vez, nomeou originalmente o trajeto dos exércitos de Mao Tsé-Tung através da China, por onde o candidato a tirano foi recolhendo aplausos e flores de suas futuras vítimas; nome depois consagrado num livro apologético de Simone de Beauvoir, mas hoje dotado de uma conotação especial na fórmula gramsciana: “A longa marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”. Donde o leitor concluirá que na verdade se trata de duas marchas opostas e simultâneas: a de uns quantos para a glória, a de muitos para o brejo”. (p. 19)
O assombro, dizia Aristóteles, é a mãe do desejo de compreender. (p. 23)
Aproveitam a ocasião para repetir, com insensibilidade de bonecos, o arqui-previsível discurso contra os culpados de sempre: desigualdades sociais, baixos salários, o corporativismo da polícia etc. Os locutores do velho script nem de longe são abalados nas suas certezas de praxe pela ponderação de que causas idênticas, presentes em igual ou maior medida na Índia ou em Cuba, não geram lá fenômenos de brutalidade comparável, nem de que estes ocorram tais e quais – como se viu também pela TV – na próspera e democrática Austrália. (p. 24)
Maquiavel já ensinava: para o fraco, é melhor parasitar o forte que o combater. (p. 27)
Sem a tua querida “liberação sexual”, que poder teria a indústria do sexo, que hoje acusas de anestesiar as massas? Sem o teu lindo “relativismo cultural”, quem poderia hoje nos vender toneladas de lixo a título de cultura? Sem o teu assalto às tradições espirituais que instalavam no homem a reverência a um poder supramundano, como poderiam os poderes deste mundo elevar-se à condição de deuses? Pois a imaginação move o mundo, e os senhores do século nada podem sem o auxílio dos construtores do imaginário. Se estes consentem em colaborar, em troca apenas de umas fantasias de cavaleiros andantes para combater em sonhos o dragão capitalista, então decerto o contratante não lhes negará subsídios de monta para a compra de lanças de papelão e cavalos de plástico. (pp. 30-31)
O senso comum, em ver de ser uma inteligência biológica aperfeiçoada pela evolução natural, é um produto ideológico artificioso, um amálgama incoerente de mentiras úteis à classe dominante. [...] O instrumento para isso é a propaganda. [...] Gramsci denomina “agressão molecular”: a destruição lenta das bases morais e psicológicas da resistência ao socialismo. (p. 34)
A esquerda compensa sua fraqueza eleitoral com seu poder de denúncia, amparado em duas armas temíveis: a hegemonia sobre os meios de comunicação e o domínio das informações estratégicas, monopolizado, desde o fechamento do SNI, pelo serviço secreto petista – um poder paralelo que hoje tem a capacidade de brincar com o Estado como gato com rato. (p. 38)
Algum de nós é criança, é idiota o bastante para ficar em dúvidas quanto à intenção desses atos? Não são atos de quem pretenda atuar politicamente na legalidade. São, com toda a nitidez possível, atos de quem se prepara para tomar o poder per fast et per nefas – [na lei ou na marra], como se dizia na década de 60. (p. 39)
Da Revolução Francesa até hoje – com a notória exceção do expansionismo bismarckiano –, não se fez uma guerra por exigência de militares, mas todas para realizar alguma doutrina acadêmica, fosse de Karl Ritter ou Karl Marx, de Georges Sorel ou de Vilfredo Pareto, de Carl Schmitt ou de Régis Débray. [...] é da natureza das coisas que os homens de ideias inventem os pretextos de matar, obrigando os homens de armas a inventar os meios de sobreviver – os quais acabam, por inescapável consequência, melhorando a vida dos sobreviventes. (p. 43)
Wanderley Guilherme dos Santos: “O dispêndio governamental com o ensino superior constitui vastíssimo desperdício, a universidade brasileira é em grande medida um embuste e é enorme a variedade de parasitas que a habitam.” (p. 43)
O sentimentalismo é o pendant clássico e inevitável da crueldade. (p. 45)
Por que o socialismo, um fracasso na realidade, continua persuasivo como “ideal”? por que o liberalismo vitorioso é incapaz de suscitar nas massas um entusiasmo comparável? Por que a imagem do regime que escraviza e empobrece é mais atraente e amável que a daquele que liberta e enriquece? (pp. 45-46)
Não é preciso dizer que o prestígio do socialismo depende de que ele se conserve sempre como um ideal, sem ter de prestar satisfações à realidade: daí a pressa que seus defensores mostram em procurar desligá-lo magicamente de toda responsabilidade pelos efeitos históricos do “socialismo real”, para conservá-lo puro e intacto no céu das ideias platônicas. (pp. 46-47)
O histrionismo patético com que essa elite denuncia “as elites”, sem jamais reconhecer que faz parte dela, mostra que a irresponsabilidade pode tornar-se o esteio básico de um modo de existência inspirado na ignorância culposa das convicções sociais que o possibilitam. Essas pessoas, literalmente, vivem na esfera da ilusão e da mentira, daí a especial capacidade, que nelas se desenvolve, para iludir os demais. Daí também a possibilidade da paradoxal devoção ao Che, que se resolve num diagnóstico de pura inversão histeriforme: exibir como objeto de culto aquilo que no fundo é motivo de vergonha. (p. 47)
Em vez de se levantar contra essa ameaça – a globalização –, a nata da intelligentzia se empenha em criar os mais elegantes pretextos ideológicos para legitimá-la, talvez porque, não tendo conseguido socializar os meios de produção, encontre algum consolo em consolar os meios de pensamento. E como esta socialização, nos dias que correm, só pode ser feita em escala mundial, a nova ideologia socialista, que é o socialismo da psique, assume a forma de uma apologia do domínio hipertrófico que os organismos internacionais pretendem exercer sobre a cultura, a moral e a imaginação dos homens. (p. 50)
Entre a língua escrita e a língua falada no Brasil, o abismo é cada vez mais fundo. Mas como poderia não ser assim, num país onde o povo não lê? [...] Muitos escritores acreditam hoje que a obrigação da gramática é adaptar-se à língua falada o mais servilmente que possa, em vez de tentar domá-la. (p. 53)
Condenando toda norma gramatical como odioso mecanismo de exclusão dos pobres e oprimidos – como se a Revolução Francesa não tivesse feito rolar um milhão de cabeças sem tirar do lugar um único pronome. [...] Quanto maior a distância entre o falado e o escrito, menos gente lê; quanto menos se lê, maior a distância entre fala e escrita. (p. 54)
Pesquisas feitas em empresas mostram que, no Brasil, um aviso que circule por escrito não surte efeito: é preciso repeti-lo em voz alta. O escrito não tem persuasividade, seu conteúdo parece vago e distante porque, sem a estimulação auditiva, o corpo não é sacudido o bastante para dar à inteligência entorpecida um sentimento de realidade. (p. 56)
Graciliano Ramos. Este venerável romancista inadvertidamente muitos malefícios ao ensino do idioma. O principal foi o de banir o uso do pronome “eu” (abundantemente usado na conversação oral), elevando ao estatuto de norma universal o que não era senão a expressão de uma timidez pessoal mórbida, necessitada de abrigar-se no impessoal e no coletivo. Graciliano, passada a fase de comunismo explícito de Jorge Amado, tornou-se a glória literária oficial do PCB – e, como tal, “o” modelo. Desde então, um espectro ronda as redações: o espectro do “estilo seco”. Seco como o cérebro de um copydesk. (p. 57)
Quando um tema desaparece da bibliografia, é porque não interessa à liderança intelectual. (p. 60)
A vulgata uspiana, de fato, só admitindo como motores da história a luta de classes (e a luta de raças transfigurada em luta de classes), teve, entre outros méritos que a consagram na devoção da intelectualidade, o de criar um fortíssimo preconceito contra os estudos de psicologia nacional. Até hoje o único livro sistemático sobre o assunto é a velha tese de Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, que começa por declarar que o objeto designado no seu título não existe: foi apenas uma invenção de uma extinta Volkyspsychologie conservadora, afetada de tara metafísica congênita. A tese marcou época, inscreveu-se na legenda áurea uspiana em tons quase mitológicos. (p. 60)
Tal como o peixe não sabe que está na água, o brasileiro não sabe que suas pretensas verdades universais são, para o restante do universo, apenas manias de brasileiro. (p. 61)
O cúmulo da alienação é atingido quando passamos a modelar por estereótipos norte-americanos, copiados do cinema e da TV, a nossa imagem de povos dos quais temos, no entanto, conhecimento mais profundo baseado em experiência direta, como é o caso dos hispânicos, dos japoneses, dos chineses, dos árabes e, last not least, dos africanos. Boa parte do fanatismo black que hoje se procura injetar no Brasil não reflete senão uma incapacidade brasileira de confiar nos conhecimentos adquiridos por experiência real, a necessidade mórbida de substituí-los por esquemas artificiosos, adaptados do exterior. A experiência real, arquiconhecida desde nossos bisavós, informa que boa parte da nossa população resulta da mestiçagem e não tem raça nenhuma determinada. É o enorme contingente dos mulatos, pardos, etc. Já a sensibilidade seletiva do norte-americano, se enxergava uma diferença entre o índio e o mestiço de índio e branco, não admitia distinção semelhante entre o negro e os mulatos de todos os matizes, mas espremia todos sob o coletivo black. Black, nos EUA, significa simplesmente “não branco”. Ora, por que a nossa percepção, mais variada e matizada, deveria ser considerada a menos veraz e substituída pelo simplismo grosseiro que só enxerga duas cores? (pp. 62-63)
Sem se dar conta de que trai o significado oculto do que diz, um célebre colunista enaltece a figura de Bentinho por ter ensinado à nação a “banalidade do bem”. Sim, hoje em dia, se quer ter a boa consciência de ser homem caridoso, o cidadão não precisa mais lutar dentro de si contra a repugnância ante o pobre, não precisa mais tentar, entre exercícios de ascetismo interior e apelando a toda sorte de auxílios metafísicos, enxergar um fétido farrapo humano, a contragosto de suas tendências naturais, el hermano, el verdadero hermano de que falava Unamuno. Basta-lhe assinar um boleto, discar 0900 ou enviar uma mensagem pela internet, e eis o homem do armazém transfigurado, pelo milagre da técnica, no anjo portador da nova caridade coletiva que, além de muito mais higiênica que a velha caridade bíblica, ainda tem a vantagem indiscutível de ser politicamente correta. Gerações e gerações se passarão antes que se possa sonhar em restaurar na alma do povo brasileiro o senso profundo da caridade, sufocado pela banalização que a reduz ao apoio político conferido, via e-mail, a uma abstração estatística. [...] Uma vez reduzido o bem a uma certa tonelagem de comida custeada em partes equitativas e baratas entre os politicamente corretos, por que não banalizar também a honestidade, fazendo-a consistir apenas numa curva estatística – espertamente abstraída de toda comparação inconveniente com outras curvas estatísticas que a desmintam? [...] Não existe bem ou honestidade sem aqueles elementos interiores, invisíveis e imensuráveis, mas decisivos na prática, que são a sinceridade e a humildade, as quais só florescem no segredo da alma solitária, far from the madding crowd (distante da multidão enlouquecida) que se apinha ante as câmaras de TV. Toda banalização, toda redução da qualidade à quantidade e da moral à política é um mal em si, cujas consequências, em longo prazo, podem ser muito mais graves que as da miséria e da corrupção reinantes. O risco que corremos, no caso, é bem claro: quanto mais enaltecemos nosso padrão de moralidade supostamente ascendente, sem lançar sobre ele um severo olhar crítico, mais nos empenhamos em solapar os fundamentos interiores do bem e da moral e em nos tornar um dos povos mais hipócritas da face da terra. (pp. 66-67)