Senhora – José de Alencar
A superioridade intelectual da mulher em Senhora de José de Alencar
O livro Senhora, de José de Alencar, publicado em 1875 e fazendo parte do valiosíssimo Romantismo brasileiro, nos envolve na peculiar história de Aurélia Camargo e Fernando Seixas, protagonistas de um amor exposto aos conflitos internos e consequentes do modo de vida da sociedade “sob o céu fluminense” no final do século XIX.
É no Realismo que veremos críticas ferrenhas aos costumes, posturas e pensamentos adotados pelos brasileiros após a Abolição da escravidão e Proclamação da República, principalmente através do nosso querido Machado. Mas já nesta obra romântica, Senhora, pode-se extrair uma visão não idealizado da mulher e do casamento. As transformações pelas quais Aurélia e Fernando passam nos diz até que ponto o dinheiro (ou a falta dele) pode moldar o ser humano, tornando-o subserviente ou dominador.
Inicialmente, “Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem”. Alheia às exigências do mundo no contexto social em que vive, ela despreza as aparências e mesmo íntima da pobreza sacrificaria todo o conforto possível se estivesse unida a seu amado e amante. Assim, ela mesma não se vê como um simples produto disponível no balcão, tendo que se debruçar à janela na espera do melhor pretendente, da melhor proposta, da melhor compra. Seria só mais uma idealização e Aurélia se configura como muitas outras personagens femininas românticas? A resistência de Aurélia em seguir os conselhos práticos da mãe, arranjando um bom partido para garantir o seu futuro, nada mais é do que uma luta que ela trava contra a “turba vil e abjeta” ainda que silenciosamente. Mas eis que surge então, entre inúmeros pretendentes devotos de sua beleza e ingenuidade encantadoras, o modelo cuja sua imaginação vinha copiando. Só Seixas consegue transpor a barreira inquebrável posta por Aurélia em defesa de galanteios comuns e que visavam geralmente sua aparência.
Depois de um mês inebriando-se das horas de felicidade que passava junto à Seixas, que não é rico e nem num futuro breve poderia vir a ser, aparece a figura sisuda de Eduardo Abreu, de excelente família, afortunado e distinto. Este, nutrindo admiração e respeito pela pureza de Aurélia, decide sem vacilo pedir-lhe sua mão.
Aqui já se lança um grande conflito, pois amando Seixas, Aurélia abre mão de Abreu para viver o seu amor, porém com a condição requisitada pela mãe de casar-se com aquele. Neste momento o perfil independente e determinado de Aurélia é traçado, mesmo antes de o destino jogá-la na opulência dourada. A mulher responsável, superior ao irmão mais velho em muitos aspectos, mostra-se inexorável em sua decisão de guiar o próprio destino.
Com um espírito menos firme, Seixas, nesse tempo mais ligado à conveniência que aos próprios sentimentos, acata a proposta de D. Emília em casar-se com Aurélia. Porém, não muito tempo depois, volta atrás em sua decisão ao ver o infortúnio que tal união poderia causar, principalmente, à sua amada.
Mas não foi Aurélia quem jogou tal compromisso nos ombros do rapaz e assim achou que Seixas estava saindo de sua vida por não amá-la do mesmo modo que o amava. Mas “as naturezas superiores obedecem a uma força recôndita” e assim Aurélia viu quando soube que Seixas a deixara por trinta contos de réis.
Aurélia amou demasiadamente não vendo a realidade a que estaria sujeita? Configurou em sua mente um Fernando que na verdade não existia? Ou tão somente estava decidida a enfrentar as consequências de quebrar as regras sociais estabelecidas para as mulheres?
José de Alencar desmancha de certa forma o superestimado valor patriarcal colocando Aurélia em meio a tantos personagens masculinos sem força, de pouco intelecto, oportunistas ou aristocráticos em demasia. Aqui não cabe a frase que diz que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, pois não há grandes homens e Aurélia está à frente de todos eles, quiçá, de toda a sociedade fluminense.
Então, um golpe do destino dá a Aurélia a arma e armadura perfeitas “para a luta, à qual talvez a impelisse principalmente a ideia do casamento que veio a realizar mais tarde”: o ouro, “um vil metal que rebaixava os homens”. Embora a riqueza seja um fator repugnante para Aurélia esse mesmo fator pode ser visto através de sua postura como algo menos negativo, pois Aurélia é de uma complexidade psicológica fascinante que se não passa por figura caricata sob os olhares sociais, assusta e comove sua mãe de encomenda e seu tutor. Aurélia, de forma irônica, faz a cotação dos homens que lhe fazem à corte, perfeita alusão a um mundo em que o valor dos indivíduos está intrinsecamente ligado à sua situação financeira. E é assim que Seixas entra novamente na vida de Aurélia: comprado no valor de cem contos de réis. Pois pela experiência Aurélia já sabe que valor o dinheiro tem na vida de Seixas, e agora o manterá como cativo submisso.
Mas Seixas não é de todo vendível ou cego às vantagens de um “grande negócio”, pois compreende “que um homem sacrifique-se por qualquer motivo nobre, para fazer a felicidade de uma mulher, ou de entes que lhe são caros; mas se o fizer por um preço em moeda, não e sacrifício, mas tráfico”. Somente em últimas circunstâncias é que Seixas opta pelo lado da razão, o lado prático. Segue com afinco aquilo que defende e atribui tais virtudes como características essenciais de um cavalheiro, assim como a galanteria.
O problema é Seixas não enxergar além disso, sair um pouco do círculo comum e deixar de lado a afamada aristocracia pra ser de fato um homem íntegro e não uma marionete dos costumes.
Desta forma é que Aurélia e Seixas não podem ser vistos como tantos outros personagens da prosa romântica, apresentando personalidades fortes e controversas. E só depois de uma situação deveras conflitante – a representação de uma comédia – a mulher traída e o homem vendido se rendem, dissolvendo o grande mal entendido e concretizam o tão esperado amor ideal proposto pela estética romântica. De fato o desfecho não poderia ser outro já que o público alvo era a burguesia do século XIX, e mesmo que Aurélia tenha se empenhado em transformar um homem para que este correspondesse às suas iniciais expectativas, ela quebra o conceito de mulher ideal e incondicionalmente submissa, muito presente no imaginário comum.