A peste, de Albert Camus
A peste, de Albert Camus
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Em 1947 o escritor argelino Albert Camus (1913-1960) publicou “A Peste”. Versão romanceada da filosofia existencialista, “A Peste” é um livro que trata da solidariedade que a todos devemos, da liberdade de escolha e da responsabilidade sobre nossas opções. Os tristes e preocupantes fatos dos últimos dias reposicionaram esse livro no centro das atenções de quem a respostas frívolas e não pensadas prefere uma reflexão mais séria sobre as contingências da vida. Esse é o tema dos embargos culturais dessa semana.
Em uma cidade do norte da Argélia (Oran é o nome), em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Noticiou o fato ao responsável pela limpeza do prédio, que se mostrou incrédulo. No dia seguinte, outro rato foi encontrado, morto, e no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose, e foi levada para um sanatório. O médico recebeu um jornalista francês que pretendia entrevista-lo sobre as condições de vida dos árabes da cidade.
A quantidade de ratos parecia aumentar exponencialmente. Os ratos começaram a ser queimados. Em um único dia oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação. A cidade entrou em pânico. As pessoas sofriam com muita febre e as mortes se multiplicavam. Decretou-se um “estado de praga”. Os muros da cidade foram fechados. Iniciou-se a quarentena. Preocupava-se com a expansão da doença.
Famílias foram separadas. Os mais doentes foram conduzidos para outros pontos da cidade. O padre local fez um inflamado sermão dizendo tratar-se de um castigo divino e que a cidade o merecia. Estavam sofrendo. Mas mereciam, dizia o padre. Prisioneiros eram usados para movimentar e enterrar cadáveres. Os corpos se amontoavam nas ruas. Crianças morriam. O padre ainda achava que tudo decorria dos planos divinos. Afirmava que os cristãos deveriam aceitar o destino. O padre morreu. Camus era um anticlerical. Mas era realista.
Em determinado momento as mortes começaram a diminuir. Fechou-se um ciclo. As portas da cidade se abriram. As famílias, então separadas, começavam a se reunir. Acabou. A praga durou 10 meses. O enredo, no entanto, é longo, e conta com muitas variações e subtemas. Vale a pena uma leitura detida.
Esse livro estonteante é uma clara e direta crítica ao nazismo e à ocupação militar alemã, que humilhou e subjugou os franceses. Camus participou da Resistência, grupo que se insurgia contra os alemães que ocupavam Paris. Escrito ao longo da guerra, com a expectativa que de que a aflição passasse um dia, “A Peste” é uma lembrança de que o pior sofrimento um dia se acaba. Noites são escuras. Mas não são eternas. “A Peste” é também discurso contra qualquer forma de opressão humana, da qual o nazismo revelava-se como a mais opressiva de todas. “A Peste” é ainda atitude de incredulidade para com o absurdo, contra o qual conduz revolta necessária e libertadora.
Camus concluiu esse desesperado livro lembrando que o bacilo da peste não morre e não desaparece. Avisou-nos que o bacilo da peste fica “dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas”. Ainda, advertiu que a peste “espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços”. E quando volta, “para nossa desgraça, manda os ratos morrerem numa cidade feliz”. Trocando-se ratos e bacilos por outros vírus e pragas tem-se o quadro aflitivo que eu e o leitor vivemos. E os mais fragilizados mais ainda.