A MONTANHA MÁGICA: TEMPORALIDADE E MORTE
Falar sobre o escritor ou a obra de Mann, constitui-se uma tarefa árdua e penosa. Detentor de uma vasta publicação literária e de uma prosa sensível e ao mesmo tempo profunda, conseguia absorver e refletir as questões emergentes de seu tempo. O pensamento de Mann se eregia em face a intensos conflitos ideológicos, que, mesclado as inquietações internas do autor, formavam aquilo que chamo de um 'complexo mosaico.' O tempo em que vivera passava por uma sinistra metamorfose política e social, que peremptoriamente, permearia seus romances pré e pós-guerra. Em destaque, a magnun dei de Mann, "A montanha mágica" (1924), de excepcional tradução direto do alemão, por Herbert Caro, abarcava toda essa reflexão temporal e filosófica, rechaçada por um espírito racionalista e ideológico que se difundia naquela Europa de incertezas. Esta obra era fruto de análises e trabalhos pretéritos ("Os Buddenbrook." Romance germe de "A montanha mágica"), e que ganhara dimensões extensas, refletindo aquela atmosfera da Primeira Guerra e antecipando o terror que emergiria com a Segunda Grande Guerra. A montanha..., que reúne mais de 800 páginas, revela ao leitor a enigmática história do personagem principal, o jovem estudante de engenharia naval, Hans Castorp; que depois de visitar seu primo (Joachim) no sanatório nas altas e gélidas montanhas da Suíça, vê-se devorado e deformado pelo tempo que não se controla, passando anos a finco enclausurado nas alturas, ultrapassando, inimaginavelmente, sua estadia, que a princípio, seria apenas de alguns dias. O referido sanatório, chamado de "Berghof", tratava doenças de origem respiratória, em especial, a tuberculose. A esposa de Mann, Katharina Mann, já se hospitalizara, em 1912, em um sanatório para tuberculosos, o que pode ter inspirado-o na criação do enredo da obra. Sabe-se que nos primeiros cinco capítulos da narrativa, é destinado para discorrer o primeiro ano da vida e da rotina de Castorp no Berghof. Como sua vida passava por um processo de transformação política, filosófica e espiritual, seus passos eram minuciosamente descritos, seguindo esse desenrolar evolutivo de atos. O tempo, principal elemento debatido na obra, é encarna por cada personagem de forma latente e febricitante, em especial, em Castorp. O jovem é tomado por uma visão subjetiva do tempo, que na nova rotina ociosa no sanatório, muda sua percepção da existência em relação à vida que transcorria na planície, ou seja, fora das montanhas. O tempo da planície é frenética e aspira a capacidade de reflexão, uma vez que tempo ganha caráter laborativo e de acúmulos de bens (uma crítica sutil ao sistema capitalista em voga na época e ao modelo industrialista). A reflexão sobre as perturbações do espírito, a vida e a morte, só é possível na ociosidade e na imperturbalidade da alma. No tempo que se suspende, como se estivesse numa cápsula do tempo. A juventude de Castorp sugere uma inocência perigosa, e que no decorrer da obra, os pensamentos frívolos, serão substituídos por uma rígida postura intelectual e politizada. Numa rotina abjeta, onde a cronologia dos atos são metódicos: as refeições, as sessões de terapias, as medicações e as recreações passam a ser as únicas atividades no sanatório. Lugar propício para se pensar a morte, além do tempo. Pois não há vida sem morte, e não se desmembra esse fluxo, sem a manifestação do tempo. O jovem engenheiro depara com inúmeras mortes, e a higienização dos quartos cria-se uma cenário macabro. Cada cadáver desce à cova, um novo hóspedes adoentados está às portas do sanatório, na iminência de sucumbir diante da mesma morte que abaterá um por um. A morte na obra é elementar, pois resgata a perspectiva de miserabilidade da condição humana, mesmo que as elites, o poder, a riqueza e razão anseiam por roubar a cena no Berghof, todos se apequenariam diante da aniquilação daquilo que era mero organismo vivo. Mann chega valer de argumentos biológico, ao narrar de forma crua a composição e decomposição da matéria humana, não atribuindo nenhum valor intrínseco ou sacrilégico ao corpo. O próprio personagem vivencia a morte que vitimaria o primo Joachim, que depois de abandonar o tratamento para seguir a obstinada carreira militar, regressa ao sanatório em profunda agonia, não resistindo o mal. Na obra, a relação vida e morte é uma espécie de veneração da doença como condição de transcendência; remetendo a filosofia nietzschiana, que se posta na ideia de que uma vida de reflexão se faz das próprias entranhas; que o sofrimento advindo da doença constitui um mecanismo de superação de si mesmo. Fora do sanatório não há cura ou possibilidade de filosofar ou analisar o próprio existir. No decorrer do romance, inúmeros personagens surgem, numa interação múltipla, desencadeando debates de todas as ordens, sempre reivindicando à morte e o tempo como primado. A narrativa lúgubre da lugar a episódios de avassaladoras paixões e vislubramento estético, quando a Sra Chauchat, bela e sensual hóspede, arrebata a indiferença de Castorp, levando-o a uma doentia paixão. Dos emblemáticos e excêntricos Settembrini e Naphta, revive-se o grande palco das profundas reflexões sobre o humano e o destino da cultura europeia. Ambos personagens encarnam as principais ideologias daquele tempo. O primeiro é um homem erudito, defensor de uma visão progressista e estadista. Um liberal que defendia a centralidade do poder por meio das autoridades públicas. Já Naphta, incorpora o radicalismo político religioso. Detentor de uma visão revolucionária, defendia as doutrinas teológicas dos medievos e o uso indiscriminado da força. Focos de intensos debates, esses personagens dão voz à imaginação e as convicções políticas do próprio Mann. Castorp, em meio a calorosos debates entre essas duas figuras, pende para o progressismo, admirando os argumentos e autoridade do italiano Settembrini. "A montanha mágica" não rendera apenas um Nobel a Mann em (1929), antes, o fez um dos maiores escritores da língua alemã e de um notório pensador mundial. Em sua seleta coletiva após ganhar o Nobel (ele selecionou apenas 10 jornalista para dar entrevista), dentre eles, Sérgio Buarque de Holanda (historiador e pai de Chico Buarque) que o entrevistara naquela ocasião, pois, Sérgio só participou, porque Thomas Mann nutria uma relação apaixonada com o Brasil (apesar de numa ter pisado em solo brasileiro) terra de origem de sua mãe, Júlia. Nem os rumores da sua homossexualidade conseguira ofuscar sua incansável produção intelectual. Esta obra, acompanhada de "Os Bunddebrook", "Morte em Veneza" e "Dr. Fausto", são apenas alguns trabalhos do escritor alemão, que revelam sua genialidade e riqueza inigualável. "A montanha mágica" foi uma leitura distinta, árdua, nauseante, arrebatadora e de uma paixão ímpar. Depois de dois meses debruçada sobre, acompanhada de anotações e breves pausas para tomar fôlego maior, fez dessa experiência um novo salto na minha bagagem literária. Recomendo!!