As origens do totalitarismo, Hannah Arendt
As origens do totalitarismo, Hannah Arendt
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) insistia que é possível a perda de todos direitos humanos, sem que percamos nossa qualidade essencial de sermos humanos e de determos dignidade que se justifica em nossa condição humana. Direito humanos são direitos históricos que radicam na natureza. Essa condição é perdida, no entanto, quando nos vemos expulsos de nossa comunidade. É o que mais ameaça nossa dignidade. Arendt preocupou-se com uma nudez abstrata de que somos unicamente humanos, ainda que não tenhamos nascidos iguais, embora ao longo da vida nos tornamos iguais. A igualdade é um caminho, e não um obstáculo.
Direitos humanos não se sustentam ou se evidenciam por si sós. Sua existência real depende de Estados que os garantam. Nessa tensão, direitos humanos e existência do Estado, é que Hannah Arendt construiu uma inteligente categoria sociocultural para tentar compreender as relações entre antissemitismo, imperialismo e regimes autocráticos. É essa tensão que constrói o argumento de Hannah Arendt em “Origens do Totalitarismo”. O grande problema de seu tempo, que de algum modo nos retoma, ainda que com outros desafios e ameaças.
Esse lúcido livro, cuja maior parte fora escrita por volta de 1950, é dividido em três seções, todas antecedidas de prefácio, que se comunicam. Arendt iniciava a discussão com o tema do antissemitismo, que a afetava pessoalmente, por ser judia e por ter deixado a Europa. Os biógrafos de Hannah Arendt contam que quando de sua passagem em fuga pela Espanha ainda teve tempo de ver o corpo de Walter Benjamin, que havia se suicidado na fronteira, confundindo, à distância, soldados espanhóis com soldados alemães. Denuncia-se o nazismo como uma fábrica de morte em massa.
Primeiramente, Arendt trata do antissemitismo, o que reputa como uma ofensa ao bom senso. Descreve o nascimento dessa odiosa perseguição. Exemplifica essa obsessão macabra com o caso Dreyfus. Trata-se de um oficial do exército francês, que era judeu, e que foi injustamente acusado, julgado e condenado por supostamente ter vendido segredos militares franceses justamente para os alemães.
Descreve esse triste episódio com riqueza de pormenor. Lembra a luta do escritor Emile Zola que endereçou uma carta aberta ao presidente da França denunciando a injustiça. O caso Dreyfus é o mais emblemático caso isolado de antissemitismo. No caso Dreyfus levou-se ao limite o problema de uma suposta conquista da imparcialidade da lei. A crença nessa imparcialidade revelou-se um engodo.
Arendt ocupa-se dos judeus chamados de “desenraizados”, que um dia se sentiram familiarizados com a Alemanha e com a cultura alemã. Explora a “teoria do bode expiatório”, cuja referência consistia em culpar os judeus por todos os problemas vividos na Europa. Ainda que beneficiados por uma legislação que garantia alguma igualdade, tinha-se apenas uma igualdade formal, isto é, uma igualdade perante a lei. Não havia uma igualdade de condições. Lembra, inclusive, que o último judeu que ascendeu na Alemanha devido a suas conexões internacionais com a comunidade judaica fora Walter Rathenau, que ocupou o Ministério do Exterior, na República de Weimar.
Fez algumas ressalvas quanto à família dos Rothschild, e a impressionante atividade bancária que desenvolveram. É o que justificaria, entre outros, que os judeus não tivessem sido muito perseguidos em Frankfurt, um centro bancário por excelência. No entanto, os banqueiros, afirma Arendt, não exploravam mão de obra ou capacidade produtiva; exploravam a miséria e a infelicidade.
Na parte referente ao imperialismo cuidou, essencialmente, da emancipação política da classe burguesa, como ponto de partida de políticas de submissão e de controle. Problematiza uma união entre burocracia e pensamento racista, que substancializou a presença neocolonial europeia na África e na Ásia. Registrou um certo imperialismo continental, que predicava nos processos de unificação política, vividos particularmente pela Alemanha e pela Itália. O mote para expansão europeia centrava-se no desafio de Cecil Rhodes, que teria afirmado que anexaria os planetas, se pudesse. O imperialismo pressupõe unidade racial em eventual detrimento da emancipação nacional. Ideias perigosíssimas.
O totalitarismo é ligado à ideia de uma sociedade sem classes, fundamentada em uma ideologia do terror. Sustenta-se nos conteúdos racistas que proclama. Arendt lembra-nos o Conde Artur de Gobineau (francês que foi diplomata no Brasil) que em 1853 teria proposto uma chave interpretativa para a história, explicando que raças impuras condicionavam a extinção das nações.
“Origens do totalitarismo” é um livro marcado pelo otimismo e pelo desespero, de acordo com definição da autora dessa obra. Propõe formas para se compreendermos a realidade, encarando-a sem preconceitos e com atenção. Arendt coloca-nos em face das angústias de um tempo no qual a dignidade humana precisa de garantias. Muito atual.
Trata-se de um livro seminal para ser revista na época em que vivemos, quando os direitos humanos são permanentemente atacados. O ser humano é sua fonte, bem como também é a fonte de todas as leis. Os seres humanos somos a origem e o objetivo da construção de direitos que nos protegeriam. É essa parece-me, a mensagem desse livro atemporal, que aponta que o racismo, o totalitarismo e o imperialismo consubstanciam as maiores forças que nos ameaçam.