A Réplica, de Rui Barbosa
A Réplica, de Rui Barbosa
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Em dezembro de 1903, Rui Barbosa, citando João de Barros, em texto de duvidosa modéstia, dirigiu-se aos Senadores da Comissão do Código Civil, a propósito de remendos, observações, senões e impugnações que opunha ao projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, que então se discutia. Invocando que não desejava de início a tarefa, mas que uma vez imposta tornava-se um sacerdócio, Rui insistia que a posição para a qual fora designado, naquele contexto, marcava pendência inevitável em terreno escabroso e esmarrido. As expressões são do jurista baiano, no original. Não me atreveria a escrever dessa forma.
Obcecado com os erros de forma, e enfrentando o revisor do projeto, Dr. Carneiro Ribeiro, de quem foi aluno, Rui proferiu discurso erudito e implacável, a propósito de uma réplica a correções primeiras que apontou (e que foram pelo Dr. Carneiro Ribeiro rechaçadas), refutando seus contraditores. Uma aula de bacharelismo brasileiro. E de português castiço também.
Era uma época que coroava espírito burocrático que se fixava desde os tempos coloniais, num mundo dominado por patriarcas e bacharéis, no qual monarquismo e republicanismo tinham graus superlativos máximos e mínimos, mas que nada diziam, objetivamente. Admite-se, assim, que não se possa julgar as pessoas fora das épocas em que viveram. Em favor de Rui Barbosa, o benefício do julgamento retrospectivo. Tenhamos paciência.
Rui Barbosa iniciou suas implicações com uma recolha de generalidades, historiando a situação e as circunstâncias que ensejavam a discussão, atingindo, diretamente, e rispidamente, seu contendor, antigo mestre. A irritação de Rui, num primeiro momento, decorreria do fato de que o Dr. Carneiro Ribeiro era especialista em filologia, e não em leis; conhecia a língua, a gramática, a sintaxe, mas não o direito civil. A argumentação de Rui surpreende. É que, nada obstante ter criticado o filólogo baiano por desconhecimento do direito, fora justamente nas questões de língua que Rui se mostrava mais intransigente. O argumento dava peso a um ponto, mas atacava justamente no ponto que não compunha a premissa.
Rui ainda lembrou que ao Dr. Carneiro Ribeiro a comissão não ofereceu muito tempo, isto é, a missão não deveria ter sido aceita. Não havia tempo para tamanha empreitada. O Dr. Carneiro Ribeiro teria aceitado a incumbência, no entanto, embora reduzido a “irrisória ração de tempo”, invocando “o amor da pátria e o dever de ser útil”; com o que Rui veementemente discordou.
Com muita resignação, Rui apresentou simplesmente todas as emendas que o Dr. Carneiro Ribeiro havia anotado ao texto original do código civil que então se discutia. Rui apontou, entre outros, que o filólogo baiano substituíra expressões como “ em que ela estabelece” por “em que estabelece ela,” ou “pelo preamar” por “pela preamar”, ou “certificará as partes” por “certificará às partes”, ou “presidir o ato” por “presidir ao ato”, ou “ouvido os interessados” por “ouvidos os interessados”, ou “lhe é garantido” por “lhes é garantido”, ou “tapamento” por “tapeamento”, ou “que pagá-la” por “que a pagar”, ou “terá lugar o disposto” por “observar-se-á o disposto”, ou “quando abrir-se concurso” por “quando se abrir concurso”, ou “os hoteleiros” por “os hospedeiros”, entre tantos outros, inexistentes, ou imperceptíveis, para o leitor comum, isto é, para o destinatário do texto normativo que então se debatia.
Também incansável crítico do trabalho da comissão do código, Rui afirmou ter impugnado e criticado “quinhentos e vinte e quatro tópicos” do texto que então analisava. Rui lembrou Eça de Queiróz que no “Fradique Mendes” afirmara que “ninguém sabe escrever”, observando que a crítica do escritor português encerrava paradoxo: para Rui o erro do escritor era consenso universal; de fato, escrevia o advogado baiano, “não há escritor sem erros”. Rui observou que “os próprios mestres têm extravagâncias”, e apoiou a tese com o reconhecimento de que muitos erros há, em “Camões, Sousa, Bernardes, Herculano, Vieira, ou Castilho”. E aproveitava para observar que na gramática do Dr. Carneiro Ribeiro não poucos erros havia..
Rui se voltou contra cacofonias, assonâncias, ecos; entendia que “um código civil [havia] de ser obra excepcional, monumento da cultura de sua época”. Rui emendou, e expôs os motivos das emendas; justificava, assim, o número de notas. Discutiu se o caso seria de se referir ao texto do código civil como “este código”, ou simplesmente, como “o código civil.” Buscou socorro nas soluções da dogmática alemã, porquanto, “logo no primeiro artigo a expressão alemã é Das Bürgerliche Gesetzbuch, o código civil, e não dieses Gesetzbuch, este código”. Encontrou a solução na tradição alemã. Caminho simples.
Em seguida, entregou-se a acalorada discussão, a propósito da melhor forma na frase “não está, portanto, ligada ao código a lei preliminar, senão como o proêmio, o preâmbulo, a introdução à obra, que precede”. Não se deveria utilizar, no fecho, “a que precede?” Em outras palavras, qual o melhor complemento, “que precede, ou a que precede?”. Gravíssimo problema que exigia solução.
Rui apontou pleonasmo na redação originária do art. 8º do projeto que dispunha que “a lei nacional da pessoa rege o regime dos bens de casamento”. Rui criticou a defesa que o Dr. Carneiro Ribeiro fizera do uso do pleonasmo, porque o filólogo baiano citara Fernão Lopes, no passo “guerra guerreada”. Em seguida Rui exemplificou o argumento, relativo a redundâncias intencionais, com Gil Vicente (dor dolorosa, remo meu remo, sei muito certo sabido, tão enganados enganos, sou fidalgo afidalgado, gozar o gozo, todo inteiro, prazer alegre, sorretício engano), e com o Padre Antonio Vieira (legítimo direito, universal para todos, segurança segura, ignorante ignorância, subir para cima, novidade nova, sempre há perpétua noite, sair o demônio fora, se repete duas vezes).
Rui criticava miríade de problemas: colocação de pronomes, ecos em ão (Rui abominava a construção “é válida a disposição para a criação de uma fundação)”, ecos em mente (Rui contestava a frase “o instrumento do consentimento do casamento integralmente”), cacofonias (intrínseca validade), o uso do “mas não” (contra o que Rui opôs o que denominou de uma bugiganga crítica), o uso do “a não”, o uso de “por cada”, de “por tal”, de “de dote”, o uso da expressão “pessoa privada”, o uso de “preferência por”, as diferenças entre “carecer e necessitar’, o uso de “datar em”, os significados transitivos e intransitivos de “retrotrair”, o uso de “querer a”, o uso de “afetar”, o uso de” honorabilidade”, o neologismo “desvirginamento”, entre outros.
Os problemas de 1903, época da discussão, já não são os mesmos que hoje enfrentamos. A mera apologia a Rui, tradicional e triunfante, que todos fazemos, é conotação que pode fixar o jurista baiano num tempo em que a forma era o núcleo duro do pensamento, e o fundo, mero mote para o ornamento inútil. E a conclusão, se válida, explica um pouco nossas opções por formulações institucionais bizarras, pouco intuitivas e muito escravas da superstição institucional.