O VELHO ESTÓICO

Por trás daquelas fotos, que exibia uma figura sombria, compenetrada e sempre acompanhado de seus charutos, existia um homem obstinado pelo trabalho, depressivo, obsessivo, relutante, patriarcal e resiliente. Esse era o Freud que poucos conheciam. A biografia escrita por Peter Gay, destrincha a complexa personalidade do homem que lançou trevas sobre a áurea da racionalidade. Ainda na infância, o pequeno Sigmund Freud (6/5/1856 - 23/9/1939) já dava sinais de uma precocidade intelectual. Sua excelência nos estudos e dedicação incessante pelas leituras, garantira-lhe privilégios entre os irmãos. No ingresso à universidade, um novo mundo abria-se diante dele. Fascinado pelas novidades científicas e o fervor do positivismo e darwinismo, debruçara, incansavelmente, às pesquisas medicinais e fisiológicas. Freud mapeou com afinco as constituições do animal humano. Ele pesquisou com certa euforia, os efeitos das substâncias tóxicas no organismo (cocaína); das funções dos órgãos sexuais, as doenças nervosas, as neuroses e demais transtornos mentais; os desdobramentos da sexualidade infantil; o dilema do homem infeliz e o declínio da civilização. Depois de vários experimentos, estudos e estágios com renomados mestres (vale citar Jean-Martin Charcot), Freud ainda se via um estudante errante e cético sobre o próprio trabalho. Devido as escassas finanças e uma noiva à espera pelo casamento (Martha Bernays), Freud tivera que optar pela clínica médica, como forma de sobrevivência. Nesse ínterim, Freud fora buscar nas diversas literaturas, mitologias, filosofias e demais ciências, elementos que budesse solidificar sua elaboração teórica. Fruto dessa vasta bagagem literária e cultural, mesclada a persistentes pesquisas analíticas, Freud construiria a partir desses eventos, a psicanálise. Quando ele encontrara a chave da interpretação das fobias, traumas e demais desajustes psíquicos, sua produção de ensaios sairia de forma torrencial. "A interpretação dos sonhos" (1900); Ensaios sobre "Da Vinci", Dostoiévski"; "Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905); "O caso Dora"; "O homem dos ratos"; "O pequeno Hans"; "Homem dos lobos" e"O caso Schorebe", foram ensaios inspirados nas análises de seus pacientes. Ainda teria, "Id, Ego e Superego"; "Totem e Tabu"; "Além do princípio do prazer" (1923); "psicologia da massa e análise do ego", "Futuro de uma ilusão" (1927) e "O mal-estar na civilização" (1930), que seria obras de maior relevância antropológica, social e religiosa.

Além de "Moisés e o monoteísmo (1938), que seria sua última grande obra. Freud não apenas buscava uma resposta aos dilemas da mente, como interessava pelo curso da humanidade. Qual seria sua análise daquele mundo onde ciência e prosperidade artística, misturava-se às ameaças das guerras? Já estabilizado, junto a sua extensa família (Sophie, Mathilde, Anna, Ernst, Oliver e Martin), viviam em um ambiente confortável e adequado ao seu trabalho. Sua filha Sophie, faleceria de gripe, aos 27, em 1920; em seguida, seu neto. Perdas que marcaria profundamente as emoções de Freud. Mas suas maiores desilusões ainda estavam por vir. Na comunidade psicanalítica, Freud construiria leais amizades e colaboradores na difusão da psicanálise. Ferenczi, Fliess, Beuer, Adler, Jung, Otto Rank, Pfister e Ernest Jones. Apenas os dois últimos manteriam-se fiéis a Freud, não rompendo com suas ideias e amizade. O caso mais emblemático fora com Jung, o qual Freud acreditara que seria o sucessor da sua psicanálise. Em 1913, depois de um pouco mais de 6 anos de intensas correspondências, a amizade de ambos se romperiam para sempre. Freud tinha a fidelidade incondicional de algumas figuras femininas, como Bertha Pappenhein (conhecida como Anna O.), Louis Andréa Salomé, a própria filha Anna e Marie Bonaparte. Essa última, seria responsável na providência da fuga dos Freud para a França, quando tropas nazistas invadiram a Áustria. Conferências, cartas, análises, depressões, perdas, rupturas, desilusões. A vida de Freud não fora um oásis. Ao contrário, seu caminho era deserto e sombrio. As duas Guerras Mundiais vieram acompanhadas de um anti-semitismo feroz, profunda crise econômica, destruição de livros, campos de extermínio e incêndio de sinagogas. Essa era a Europa que Freud vislumbrava. Resistiu até as últimas decisões políticas ao deixar sua Áustria. Até que seu país cedera as pressões e exigências de Hitler. Era o fim da Áustria. Em 1923, descobre uma câncer. Passa por mais de 28 cirurgias e procedimentos, lutando durante 16 anos contra a doença. Cansado e debilitado, Freud pressentia seu fim. Exilado e frustrado com sua pátria, vai para Londres e lá tenta adquirir cidadania inglesa. Seu médico de confiança, Max Schoun, o acompanha de perto. Sua filha Anna, torna sua melhor companhia nos momentos desoladores por causa das dores na boca. Em 1939, com a plena certeza que seu fim estaria próximo, combina com seu médico que não prolongasse seu sofrimento, adotando uma técnica que a morte viesse suavizada. Aos 83 anos, no dia 23 de setembro de 1939, Freud passa mal, e ao lado de Schoun, seu fiel médico, faz-lhe um sinal. Ele sabia que chegara a hora. Freud recebeu 3 doses seguidas de morfina, que o conduziu serenamente ao sono eterno. Nos últimos dias, seu chow chow já não aproximava, devido o mal cheiro que exalava de sua boca. Um homem que desde o início sabia o que procurava. Enfrentando, honrosamente, seus oponentes. Paciente na dor, perseverante no trabalho e resiliente com a vida. Viveu como um burguês de prestígio e morreu como um fiel estóico, encarando a morte como liberdade.

Juliano Siqueira
Enviado por Juliano Siqueira em 03/03/2020
Reeditado em 04/03/2020
Código do texto: T6879634
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