Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado

Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Brás, bexiga e barra funda, de Alcântara Machado (1901-1935) foi publicado em 1927. O livro é composto de um conjunto de contos, que narram a vida paulistana, no início do século XX. Machado trata de São Paulo que se descobre uma metrópole, um ambiente de muita imigração. Retrata, com riqueza de pormenor, os italianos que se adaptavam a um novo modo de vida. O ítalo-brasileiro é o personagem coletivo desse belíssimo livro.

Machado retrata um processo frenético de urbanização. Trata-se de um livro que pode ser acompanhado pela leitura de “A Capital da Vertigem”, de Roberto Pompeu de Toledo, historiador dos encantos da paulicéia. Do ponto de vista da composição, o livro é exemplo da estética modernista. O estilo é despojado, irônico, provocativo. Machado conviveu com os modernistas. Formou-se em direito pela faculdade do largo de São Francisco. Fez crítica literária para o Jornal do Comércio.

Entre os textos que compõem Brás, Bexiga e Barra Funda sobressai-se, pelo lirismo e pela tristeza latente o conto Gaetaninho. Há uma galeria de tipos ítalo-paulistanos, cujos nomes evidenciam a onda imigratória: o próprio Gaetaninho, Beppino, Nino, Tia Peronetta e Tia Filomena, entre outros. Moravam na rua Oriente. Vida dura, difícil era inclusive andar de bonde.

Vamos ao enredo. Gaetaninho é um alegre menino que brinca nas ruas. Era o tempo no qual as crianças brincavam nas ruas. O berro da mãe, no fim da tarde, para o banho e para o jantar, era o toque de recolhida. Obcecado com os carros que começavam a circular pelas ruas Gaetaninho sonhava com um passeio de automóvel. Em permanente devaneio, quase foi atropelado por um Ford. A mãe recolhe o menino, que fugia do chinelo sancionador.

Gaetaninho teve um sonho que se considerou de péssimo presságio: estava no enterro da tia. Um mau agouro. A tia beirou ao ataque de nervos quando soube do sonho. No sonho, Gaetaninho observava os amigos, invejava as roupinhas de marinheiros que então se usava. Percebia os automóveis que seguiam o cortejo fúnebre. Era a oportunidade que tinha para montar em um daqueles imponentes carros e, no sonho, realizar seu sonho. O berro da mãe o acordou na manhã seguinte.

Gaetaninho seguia para as brincadeiras do dia. Jogava bola com os amigos. A rua era um espaço franco, livre e desimpedido. As crianças entregavam-se à disputa da bola com tal nível de concentração que não tomavam conta do que ocorria ao redor. Gaetaninho corria concentradamente quando um bonde o pegou. O menino caiu morto. No bonde estava o pai de Gaetaninho. Dor maior não pode haver.

O enterro do menino registra os dois sonhos da criança. Fora vestido com uma roupinha de marinheiro. Transitava por um carro, deitado no caixão. Essa contingência da vida, cuja explicação satisfatória simplesmente não satisfaz, indicadora de um acaso que não dominamos, é ilustrada por flashes de um animado progresso.

Alguma ambiguidade parecer marcar os modernistas, que eram, ao mesmo tempo, católicos e iconoclastas. A tomarmos a imagem de um crítico, tem-se a impressão de que os modernistas, simultaneamente, rezavam preces apaixonadas, ao momento em que liam Voltaire em segredo. Gaetaninho é a esperança e a lástima. A fé e a tragédia.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 23/02/2020
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