Diário das minhas leituras/48
27/01/2020 – MARJANE SATRAPI
Li o célebre “Persépolis”, primeira obra em quadrinhos que leio além daqueles mais voltados ao público infantil. “Persépolis” é para adulto e, mais, é alta literatura. É a biografia da autora que, sendo iraniana, encarna algumas das mais latentes contradições da vida moderna, a partir da mistura e do conflito que há entre credos e ideologias do oriente e do ocidente. Observe-se: o governo do Irã justifica as suas atitudes repressivas em nome da liberdade. O governo dos Estados Unidos também usa a liberdade para justificar não apenas as suas investidas interesseiras no Oriente Médio, mas o próprio modo de vida que considera adequado para os seus cidadãos. Assim agem todos os governos: sempre favoráveis à liberdade. Só que a liberdade não é algo que possa ser imposto por governos – a liberdade repele os governos, já que eles, mesmo os pretensamente mais democráticos, só podem se sustentar a partir da força e da coerção, que é, afinal de contas, também a supressão da liberdade. A liberdade digna de ser chamada com esse nome é unicamente a de pensamento e a de consciência. E é precisamente em exaltação a essa liberdade que a vida de Marjane Satrapi se revela. Dotada desde cedo de um entendimento de mundo muito singular, ela não tardou a perceber a realidade de injustiças em que estava inserida. Isso pode parecer óbvio para quem vivia sob um governo tirano no Irã, mas é preciso ter em conta que a percepção de Marjane sobre as injustiças do mundo abrangia inclusive aqueles que faziam oposição aos desmandos governo iraniano. Em algum grau, eles também reproduziam os preconceitos, as divisões e o jogo do poder daqueles que pretendiam derrubar. Talvez a influência do ambiente sobre nossas atitudes e personalidades seja maior do que preferíamos admitir, talvez seja necessário não simplesmente fazer com que da revolução emerja “o outro lado”, mas algo completamente diferente dos padrões conhecidos até então. Marjane tateava, em busca de compreensão sobre o que via. Errava, frequentemente errava, mas tinha dentro de si os valores necessários para que, a cada queda, aprimorasse o seu conhecimento e chegasse mais perto da justiça que, desde cedo, intuía que era necessário aplicar ao mundo. A sua eterna conclusão era a de que era preciso aprender – sua curiosidade, sua fome e sua sede permitiram que, aos poucos, ela conseguisse ter uma visão mais clara do que significava viver nesse mundo que, o tempo inteiro, busca nos atar e nos prender, para que não alcancemos nunca o desejo de liberdade que guardamos dentro do peito. Teve, é verdade, a felicidade de encontrar uma família de mente mais aberta, uma mãe que desejava justamente a sua independência, uma avó que não tergiversava diante de atitudes da sua neta que reproduziam o mesmo padrão de violência e injustiça dos governantes, um pai que reconhecia a necessidade de que a própria filha errasse por si só, por saber que apenas da experiência individual nasceria o aprendizado mais duradouro – além de tios e outras pessoas vítimas da violência no país que solidificaram, em seus pensamentos, a noção de uma liberdade mais profunda e verdadeira do que a prometida pelos governos. Há um preço por essa liberdade e por essa independência e que talvez seja muito difícil de aceitar, que é o da solidão, o do sentimento de que não se está devidamente encaixado neste mundo. Marjane, porém, dá mostras de que pode suportá-lo, seja por sua inegável força interior ou até mesmo por uma improvável onda de acasos, quase milagres, que continuamente a favoreceram nas condições mais adversas da sua vida. Talvez houvesse alguém querendo que a Marjane continuasse por aqui por mais tempo. Ela poderia até não fazer mais nada em sua vida: esse simples livro já seria sua grande contribuição à humanidade.
31/01/2020 – MURAKAMI
Já estou com a leitura avançada de “Kafka à beira-mar”, o primeiro livro que leio do Murakami. Creio que entendi um pouco o fascínio que ele provoca e que faz com que ele seja atualmente um dos autores mais populares da literatura mundial. Sua linguagem, ainda que considerando o processo de tradução, é ágil e pode-se dizer até vertiginosa. Ele não se perde em descrições excessivas e faz bom uso do recurso dos diálogos (ainda que, vez ou outra, as conversas pareçam mais eruditas do que seria verossímil). Também joga muito bem com o recurso do suspense, o que fatalmente desperta o interesse e prende a atenção do leitor. São vários fios narrativos correndo de forma paralela e o leitor fica interessado em saber como eles poderão se entrelaçar lá na frente. O fato de também criar situações fantásticas e absurdas é, apesar do estranhamento que pode provocar, mais um aliado na tentativa de se conquistar o leitor, já que ele passa a querer seguir adiante na leitura para verificar de que maneira tudo isso poderá ser explicado ao final (ainda que essas explicações provavelmente não sejam tão racionais e o mistério permaneça). Apesar de estar apreciando essas habilidades e me envolvendo com a trama, não deixo de pensar que a extensão do livro resulta em certo desgaste para essas estratégias.
02/02/2020 – MURAKAMI
Às observações da nota anterior, acrescento que entre os ingredientes que ajudam a explicar o fascínio de Murakami na literatura atual estão as referências à cultura pop, uma certa dimensão filosófica, alguma dose de humor, a presença de alguma história de amor e alguns episódios de sexo. Soma-se a isso a criação de um personagem singular e marcante (não o protagonista, mas o velho Nakata). Não sei até que ponto tudo isso se reproduz nos outros livros do autor, mas em alguma medida elas não devem estar restritas a “Kafka à beira-mar”. Como eu já imaginava, o autor não resolve, ao final do livro, os mistérios em que se sustenta a trama, o que sempre dá margem para discussão e debate dos leitores, favorecendo, ainda dessa vez, o seu sucesso. Como diz um personagem, já perto do final do livro, “Se as palavras não conseguem descrever corretamente os fatos, o melhor mesmo será não tentar explicá-los de maneira alguma”. Parece ter sido essa a lógica seguida por Murakami neste livro. Como disse, lê-se com facilidade o livro, mas há sempre o risco de que o leitor se perca conforme os absurdos se sucedem.
03/02/2020 - RABINDRANATH TAGORE
Mais do que as questões literárias (e se trata de um Nobel de Literatura), o que chama a atenção nas histórias “O casamento e outros contos” é a situação incrivelmente cruel da mulher na Índia no tempo do autor (não sei em que medida isso mudou de lá para cá). Em quase todos os contos se percebe a mulher como mercadoria na sociedade indiana. A mulher valia menos do que um homem mesmo se o homem fosse alguém com transtornos psiquiátricos. Embora resvale aqui e ali, a posição do autor em relação às mulheres parece ser favorável, ainda que isso vá contra os preconceitos que a tradição legou àquela sociedade. Há mulheres que, depois de muito padecer, adotam posições libertadoras (muitas vezes só com a morte) e outras cuja própria aceitação do seu destino expõe a crueldade do sistema em que estão inseridas. Há dramas que, se bem que narrados com muita simplicidade, chocam a nossa visão ocidental e contemporânea. Em termos literários, eu achei que esses contos ficaram a dever a alguns que eu já conhecia do Tagore, como os belíssimos "O abandonado" e "O homem de Cabul", que li em antologias com outros escritores. Não sei se os desse livro são de uma fase diversa do autor, mas a mim pareceu que estão um nível abaixo em relação aos que eu já conhecia. A exceção talvez fique por conta do último conto do livro, "Os vivos e os mortos", interessante história de uma mulher que se acreditou morta e continuou vivendo no mundo dos vivos (mas não por muito tempo).
05/02/2020 – HIROMI KAWAKAMI
Li rapidamente o seu romance “A valise do professor”. É a história de um romance lento, apesar da escrita bastante objetiva da autora. Há pouca movimentação na história, o que não significa que não haja muita coisa se passando "internamente" para a protagonista - assim como costumam ser os romances, afinal, cheios de pequenos acontecimentos que muitas vezes não saem da nossa cabeça. No relacio-namento desse professor, já idoso, com uma antiga aluna próxima à meia-idade, a ausência de grandes movimentos é, também, resultado dos excessivos formalismos e ritos a que a sociedade em que estava inseridos se submete. Os frequentes momentos da trama em que se passa bebendo ou comendo podem ser, também, subterfúgios dos personagens, que, não conseguindo expressar adequadamente seus afetos, partem para o mundo "material", um mundo a que eles estão mais acostumados e podem lidar sem constrangimentos. É interessante observar ainda como aspectos da própria natureza parecem muito mais presentes para quem vive em uma metrópole japonesa do que para nós, cidadãos urbanos ocidentais. Vive-se a natureza de uma maneira mais intensa do outro lado do globo e no meio dessa pequena trama romântica também se pode vislumbrar vários aspectos dessa relação. A narrativa em primeira pessoa de uma mulher, em tese, independente e acima dos relacionamentos convencionais me lembrou da Colette, mas eu precisaria conhecer mais para verificar se a comparação procede.
11/02/2020 – KURBAN SAID
Geralmente se diz que os livros permitem que as pessoas viagem sem sair do lugar. No entanto, na maior parte das vezes, as pessoas “viajam” para lugares já bem conhecidos: a França, a Inglaterra, os Estados Unidos, quando muito a Rússia das grandes cidades. Quem é que faz uma viagem para o Azerbaijão e se relaciona com pessoas da Armênia e da Geórgia? O que conhecemos sobre esses países e suas culturas é algo muito próximo do nada absoluto. Uma viagem para lá, portanto, seria bastante interessante, mas também muito prazerosa. Pelo menos assim será se for feita através de “Ali e Nino”, história escrita pelo misterioso pseudônimo de Kurban Said. “Ali e Nino” é, de fato, uma história de amor, como costuma ser vendida por aí, mas o principal no livro não é o amor, mas o conflito cultural entre Ásia e Europa, revelado já nas primeiras páginas. Para nós que não sabemos nada desses países, convém observar que eles ficam justamente na intersecção entre Ásia e Europa, aproximando-se ora de uma e ora de outra. Mais especificamente, o livro conta a história de um muçulmano do Azerbaijão e uma cristã da Geórgia que, por uma dessas coisas da vida, interessam-se um pelo outro, mesmo com todas as diferenças culturais. No meio da trama, há russos, armênios e persas, cada um com seus próprios costumes e vendo os dos outros como bárbaros e selvagens. As tensões étnicas e culturais ali apresentadas se mostram bastante presentes ainda na realidade de hoje, quando prestamos atenção ao que acontece no mundo. E se, por um lado, nos chocamos com certos costumes daquela região, notadamente aqueles que dizem respeito ao papel da mulher, não deixamos de ser, aqui e ali, confrontados com a nossa própria visão de mundo ocidental, bastante contraditória com os valores cristãos que dizemos praticar. O livro todo é um grande confronto de culturas, com uma tensão que prende a atenção, mas até mesmo com algum humor, e tudo isso em capítulos ligeiros e de fácil leitura. Vale a viagem.
17/02/2020 – KENZABURO OE
Livro: 14 contos de Kenzaburo Oe
Autor: Kenzaburo Oe
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2011
Kenzaburo me lembrou, nesses contos, outros dois escritores cujos nomes começam com K: Kafka e Kundera. O primeiro é responsável pela atmosfera absurda e pelo ambiente de opressão enfrentado por personagens. O melhor exemplo disso é o conto “A convivência”, também o que de mais gostei. O conto me lembrou muito “Blumfeld, um solteirão”, do Kafka. Afinal, também ali há um personagem que enfrenta em sua própria casa um evento extraordinário e sem sentido (neste caso, a aparição de quatro macacos que o observavam continuamente) e também ali a trama prossegue para o ambiente de trabalho (onde se encontra, presumivelmente, as motivações para o estranho fenômeno). Achei esse o melhor conto. Outro conto bastante kafkiano, apesar do formato de peça de teatro, é o que abre a coletânea, chamado “O armazém zoológico”, sobre uma cobra que fugiu do circo e supostamente teria engolido um estudante. Há até mesmo uma boa dose de humor na trama, mas também interessantes jogos psicológicos, em meio às irrealidades enfrentadas pelos personagens. Pode-se falar ainda em “Os pássaros”, onde o personagem não “cria” para si macacos, mas aves. “Aghwii, o monstro celeste”, é também uma história que trata de aparições imaginárias, evidenciando ser esse um dos temas mais caros ao escritor. Já sobre Kundera, a associação que pude fazer foi a partir dos contos de Kenzeburo que configuram “risíveis amores”, como aqueles de que o escritor tcheco se ocupa. São histórias de romances modernos, de relações complexas e, em certa medida, patéticas – perfeitamente risíveis, ainda que não sejam engraçadas. Também está ali a nota da sexualidade presente em Kundera, mas de um jeito que me pareceu até mais cru. São desse time os contos “Salte sem olhar”, “Em outro lugar”, “Exultação” e “O homem sexual” (que é, sob o ponto de vista moral, o mais chocante deles, ao tratar de molestadores de mulheres em transporte coletivo). O que também se destacou para mim foi a constância com que os contos se centram em pessoas jovens. É como se esse período de formação da individualidade fosse de especial importância para o escritor (vide o caso de “Seventeen”). E, de certa forma, isso justifica também a imensa quantidade de masturbações ao longo do livro. Achei que os últimos contos, que são também mais recentes, são menos impactantes que os anteriores, provocando um estranhamento mais difuso, que não leva ao envolvimento do leitor. Há ali, sobretudo, o tema da deficiência mental, consequência do drama enfrentado pelo autor na sua família.