O Leitor, de Bernhard Schlink
O Leitor, de Bernhard Schlink
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O tema da culpa, tão recorrente na cultura alemã dos pós-guerra, é também central em famoso livro de Bernhard Schlink, Der Vorseler (O Leitor), cuja versão cinematográfica alcançou estrondoso sucesso. Vamos ao enredo.
Na Alemanha que se reconstruía do trauma da guerra, o encontro entre Michael Berg (um menino de 15 anos) e Hanna Schmitz (uma mulher de cerca de 30 anos), ele, na idade adulta protagonizado por Ralph Fiennes e, na adolescência, por David Kross; ela, protagonizada por Kate Winslet, dá início a este drama perturbador.
O Leitor é uma história dramática que enfrenta um discutido sentimento de culpa, que afetaria a cultura alemã do pós-guerra. Trata-se de narrativa que desafia o fantasma do nazismo. É uma discussão corajosa. Na versão para o cinema, O Leitor contou com orçamento de cerca de 30 milhões de dólares, atores experientes - - Fiennes protagonizou A Lista de Schindler, O Paciente Inglês e O Jardineiro Fiel, Winslet fez Titanic - -, um diretor talentoso, Stephen Daldry, e cenas fotografadas na Alemanha - - em Heildelberg e em Frankfurt - - onde se filmou o julgamento. Os atores falam inglês com um perceptível sotaque alemão. David Kross, que fez o jovem Berg, é alemão, e teria aperfeiçoado o inglês para as cenas que protagonizou.
A narrativa se inicia com Michael em Berlim, em 1995, preparando-se para ir para o trabalho. Ele é advogado. A mulher com quem está, e que parece ser uma companhia transitória, indaga a Michael se alguma pessoa já esteve com ele o tempo bastante para saber o que se passava em sua cabeça. A pergunta já evidencia que Michael é um homem difícil, reservado, que carrega segredos, e culpas que guarda para si. Michael diz que visitará a filha, Júlia. Pela janela vê um trem. Lembranças começam a atormentá-lo.
Sigo com essas reminiscências. Em algum dia de 1958, ele tinha quinze anos, estava voltando da escola, passava mal. Uma mulher que aparentava cerca de trinta e cinco anos o levou até seu apartamento, dispensando-lhe alguns cuidados. Ela trabalhava na companhia de trens, cobrava os ingressos dos passageiros, e vivia com muita simplicidade. Nada de mais íntimo ocorreu, que não um abraço, que marcará Michael pela vida.
Ele retornou para casa. Estava com escarlatina. Ficará isolado por volta de três meses. Recobrando a saúde, Michael compra flores e, em sinal de agradecimento, vai entregá-las a Hanna. Ela passava roupa. Em seguida, esperando-a, ele a vê se trocando. Ela percebe que está sendo espiada. Ele foge. E não deixará mais, a partir de então, em pensar naquela mulher madura, tão bonita, que o acompanhará pela vida, ainda de que modo assustador. Mais uma vez ele tentou uma aproximação. Michael retornou para a casa de Hanna, que pediu que ele subisse com dois baldes de carvão, que ela usaria para aquecimento. E porque Michael ficou sujo de carvão, Hanna o colocou numa banheira. O romance começou.
Michael, mais uma vez em sua casa, pensa em Hanna o tempo todo. No caminho de volta da escola Michael passa pela casa de Hanna. A atração que os unia era muito forte. Descobrem como se chamam, e já estão se encontrando pela terceira vez. Ele diz que estuda latim e cita Horácio no original. Ela se delicia com a frase, que certamente não entendeu. Michael pega outro livro, em grego, no original, e lê em voz alta. Hanna delira. Michael então lê Lessing para Hanna. E ela pede que ele leia mais.
Mais tarde, Michael está num trem no qual Hanna trabalhava. Envergonhada, ela foge. Na casa de Hanna, eles discutem. Michael pergunta a Hanna se ele a aborrece, em face do que ela diz que ele é insignificante, e que não tem poder para aborrecê-la. Michael chora. Diz que nunca esteve com nenhuma mulher antes. E diz que não pode viver sem ela. Michael então lê Homero para Hanna. Ela impõe que a partir de então ele irá ler em voz alta.
Combinam um passeio pelo campo. Na hora da refeição, Hanna segura um cardápio, porém deixa a Michael a escolha do prato. O atento leitor ou espectador percebe então a chave interpretativa do enredo: Hanna é analfabeta. Seguem para uma igreja que tem aparência de estar abandonada. Ela chora copiosamente enquanto ouve crianças cantando. Ela em seguida nada um lago, enquanto ele diz compor um poema para ela. Na escola, uma jovem chamada Sophie se aproxima de Michael. Ele pouco se importa. Sempre deixa as aulas mais cedo. E começa a ler o contista Anton Tchecov para Hanna. Hanna foi promovida no trabalho, designada para atuar no escritório da empresa. A promoção a assusta. Como irá ler todos os papéis? Hanna está irritada. É o dia do aniversário de Michael. Os amigos da escola haviam organizado uma festa para o rapaz. Michael prefere ficar com Hanna, para quem começa a ler Guerra e Paz de Tolstoi. Michael vai até os amigos. Mais tarde, quando retorna para a casa de Hanna, verifica que ela se foi.
Os anos se passaram. Começam as memórias do tempo da faculdade. Michael estudou Direito. Numa determinada aula, o professor recomenda que leiam Karl Jaspers, A Questão da Culpa Germânica. O professor observava que as sociedades equivocadamente acham que vivem num contexto de respeito a moral. E insistia que ninguém poderia ser culpado apenas porque teria trabalhado em um campo de concentração. De certa forma provocava os alunos, na medida em que afirmava que se deve ser julgado de acordo com as leis que se reportam ao tempo em que os fatos teriam ocorrido.
Discutem Filosofia do Direito, a relação entre moral e lei, os efeitos da lei no tempo, a obrigação de se cumprir a lei. O professor leva os alunos para que acompanhem julgamento de criminosos de guerra nazistas. Havia protestos na porta do tribunal. Alguns queriam o julgamento. Outros o achavam totalmente desnecessário. Para seu espanto e desespero Michael toma conhecimento de que Hanna é um das rés. Ela fora das SS, em 1943. Trabalhou em Auschwitz. No julgamento, discutia-se a culpa de um grupo de guardas nazistas, todas mulheres, que teriam trancado numa Igreja em chamas cerca de trezentos judeus. Discutiu-se também como mulheres eram selecionadas para as câmaras da morte. Apurou-se que Hanna tinha um inusitado método de escolha. Optava por mulheres jovens, fracas, e as obrigava que lessem para ela, antes da execução.
De volta à aula os alunos discutem. Para um deles o julgamento era um engodo. Pergunta: quem sabia do que se passava? o quanto se sabia do que se passava? E irado gritava que todos sabiam! Michael, cada vez mais perturbado, visita o que restou de um campo de concentração. Retornando ao julgamento compreende que toda a culpa era imputada a Hanna, porquanto ela teria redigido um relatório para as SS, dando conta dos fatos, pelos quais se responsabilizava. Porém, assustava-se Michael, como Hanna poderia ter redigido o relatório, se era analfabeta?
Michael conversa com o professor. Diz que tem uma informação substancial para o desfecho do caso. O professor lembra que Michael tem obrigação moral de revelar a informação que tem. Michael argumenta que Hanna não quer que divulguem que era analfabeta, envergonhada que estava com o fato. Michael vai visitar Hanna. No momento em que é conduzido para onde ela se encontra, ele se arrepende, e volta. O Tribunal condena as outras rés a quatro anos de detenção. Hanna foi sentenciada com a prisão perpétua.
No enredo pode-se talvez perceber uma ponta de denúncia relativa a suposto comprometimento da intelectualidade alemã (Gleichshaltung) com as diretrizes do nacional-socialismo (Führerprinzip) e, nesse sentido, numa das prováveis traves de interpretação do enredo, os argumentos do professor de Direito.
No entanto, dependendo do modo como lemos essa história, há alguma significação metafórica, no sentido de que Michael metaforicamente representaria a própria Alemanha. Viu. Sabia. De algum modo participou. Mas se calou. Esse silêncio será a perturbação que o acompanha por toda a vida.