O Primo Basílio, de Eça de Queiróz
O Primo Basílio, de Eça de Queiróz
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O Primo Basílio, de Eça de Queiróz, é uma das obras-primas da literatura realista portuguesa, equivalente ao que representa Madame Bovary, de Gustave Flaubert, na literatura realista francesa. Nesse romance, alguns de nós nos encantamos com a personagem principal, Luísa, cujo “cabelo louro um pouco desmanchado, com um toco seco do calor de travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea (...)”. Outros abominam essa heroína maldita, e a reação original negativa brasileira ao romance (especialmente com Machado de Assis, como observado) é indicativa dessa falta de compreensão. Luísa é um pomo da discórdia literário, exatamente como Emma Bovary, Capitu, Gabriela e Desdêmona.
O objetivo de Eça era enfrentar a estética romântica e atacar os excessos do romantismo. Luísa era uma voraz leitora de A Dama das Camélias (Alexandre Dumas Filho), dos livros de Walter Scott (Ivanhoe) e de outros do gênero. Entorpecida pelas heroínas românticas, se imaginou uma delas, o que foi potencializado pelo vazio existencial da vida que levava, pela confiança extrema do marido (Jorge) e pela canalhice desses aproveitadores de plantão, que exploram indecisões e incertezas. Geralmente se dão mal. Eça inverteu a lógica da vida real: e é essa técnica argumentativa a fonte de tanta surpresa.
Vamos ao enredo. Retornando do Brasil (e pode haver aí algo também de brasilofobia), onde talvez fizera fortuna, depois da quebra do pai, Basílio procurou a prima, casada com um engenheiro de minas, Jorge. Luísa, cortejada, apaixonou-se, entregando-se aos encantos do primo, que, no entanto, apenas planejava incluí-la em sua coleção de conquistas. Chegou a locar um local infecto e imundo, por economia (Basílio era um sovina), que metaforicamente chamava de Paraíso, onde se encontravam. Juliana, a empregada amarga (e aí um inegável exemplo de luta de classes), colheu do cesto de lixo um rascunho de carta de Luísa para Basílio. A partir de então passou a chantagear a patroa, a qual passou a tratar como empregada.
Consumada a conquista, Basílio seguiu para Paris, pouco se importando com Luísa. Jorge, o marido traído, retornou para o lar, depois de uma viagem de trabalho. Luísa, em desespero, revelou a estória para um amigo do marido, que tomou de Juliana todas as cartas e provas que havia. Juliana então morreu. Luísa passou a viver um delírio contínuo, não aceitando o que fizera, arrependida, com o casamento moralmente desfeito. Jorge interceptou uma carta de Basílio para Luísa, guardando-a, por duas semanas, e ao final revelando à mulher que de tudo sabia. A saúde de Luísa foi mais uma vez fortemente abalada. Ainda que perdoada por Jorge, talvez nesse momento uma alma nobre e santa e desarmada, que poucas há no mundo, Luísa sucumbiu a uma pneumonia. Eça argumentou que leitoras frívolas de livros românticos podiam se ressentir de malícia e de capacidade analítica.
Há nesse livre também uma figura aparentemente menor, o Conselheiro Acácio. Um tipo que primava pelas obviedades; nesse sentido, e por tudo que envolve esse esboço humano tão realista, o Conselheiro transformou-se em um personagem maior; foi elevado pelo tempo. É mais citado e lembrado do que o próprio Basílio, patife e aproveitador, do que o bem-comportado Jorge, do que a ingênua Luísa; também é mais lembrado do que Juliana, a empregada amargurada que chantageou a patroa, Luísa, de cuja traição sabia.
É de seu nome próprio (Acácio) que se construiu um adjetivo, “acaciano”, identificador de tautologias e redundâncias. O Conselheiro Acácio é, na essência, o próprio cerne do bacharelismo oco. Eça descreve o Conselheiro como alto e magro. Veste-o recorrentemente de preto. Adorna-o com um colarinho entalado no pescoço. Marca-o com um rosto aguçado. De algum modo pendura no Conselheiro cabelos tingidos, que transitavam de uma orelha à outra, colando-os por trás da nuca. A calva então brilhava, em contraste com o cabelo escuro. O bigode, no entanto, não era tingido; assim, grisalho e farto o bigode caía-lhe pelos cantos da boca. Segundo Eça, o Conselheiro era muito pálido, vivia com as lunetas no queixo; o escritor português conta-nos que o Conselheiro possuía grandes orelhas, “muito despegadas do crânio”. Uma caricatura.
Formalista, gongórico, pedante, ainda que delicado e educado, o Conselheiro fora Diretor-Geral do Ministério do Reino. Era um burocrata convicto, daqueles que adoram carimbos, despachos, fichas e relatórios que não servem para nada. Toda vez que o nome do Rei era pronunciado o Conselheiro erguia-se um pouco da cadeira. Dono de gestos medidos, calculava inclusive o modo como inalava o inseparável rapé. Era histriônico.
O vocabulário do Conselheiro era absolutamente excêntrico; não usava palavras triviais. Por isso, lê-se no Primo Basílio, que o Conselheiro ao invés de dizer “vomitar”, utilizava o verbo “restituir”, acompanhado de um gesto indicativo. Para o Conselheiro, Almeida Garret era “o nosso Garret”, Alexandre Herculano era “o nosso Herculano”.
O Conselheiro citava o tempo todo. Vivia, ao que consta, “amancebado com uma criada”. Resistia às investidas de Dona Felicidade, por ele apaixonada, porém mantinha um romance clandestino como a criada que de suas coisas cuidava. Preocupado com a Economia Política, o Conselheiro, sempre segundo Eça, teria escrito uma obra intitulada “Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e sua Distribuição Segundo os Melhores Autores”; esse imaginário e maravilhoso livro era acompanhado de um subtítulo: “Leituras do Serão”.
O Conselheiro teria também publicado outra obra de tomo, e de muito interesse, denominada de “Relação de Todos os Ministros de Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos dias, com Datas Cuidadosamente Averiguadas de seus Nascimentos e Óbitos”. Esse livro deveria ser interessante, rico em pormenor, e em informações de utilidade nenhuma.
Ao longo do Primo Basílio as inserções e intervenções do Conselheiro nos indicam uma figura absolutamente moralista; esse moralismo contrastava com a curiosidade que se desperta em torno desse personagem, que Eça assemelha ao próprio ridículo, cuja vida particular e íntima sugere uma fonte inesgotável de taras e de superstições. A resistência para com as investidas de Dona Felicidade e o romance subterrâneo mantido com a ajudante doméstica sugerem essa dubiedade que antepõe pautas morais internas e externas. O Conselheiro Acácio também pode ser o exemplo do bacharel, que muito fala, pouco diz, nada pensa, tudo reproduz.
Porém, de algum modo essa triste figura — porque em sua moderada alegria o Conselheiro parece-me incomensuravelmente infeliz — demanda um defensor. O Conselheiro Acácio, a respeito de quem sempre se censurou, criticou, e de quem sempre se riu, não passa, além dos limites que lhe dão o aspecto de uma criação literária, da síntese identificadora das frustrações e ressentimentos que todos somos e vivemos. É uma abatida figura que demanda ajuda, compreensão e carinho. É um homem triste, como às vezes triste foi também Eça, como triste foi às vezes Portugal no século XIX, e como tristes somos na inutilidade dos conhecimentos que pensamos que possuímos. De igual modo, Luísa também merece alguma defesa. Luísa é consequência, e não causa, de um mundo de valores invertidos, de pensamentos perversos e de frustrações constantes.