O bebê da tarlatana rosa, de João do Rio
O bebê da tarlatana rosa, de João do Rio
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
João do Rio (1881-1921) foi um dos mais importantes jornalistas e escritores brasileiros do início do século XX. Foi contemporâneo de Rui Barbosa, de Coelho Neto, de Lima Barreto. Cronista incomparável, é a grande testemunha da vida carioca. ‘A alma encantadora das ruas” é o livro chave que reúne textos desse tempo. João do Rio fala das pequenas profissões, dos tatuadores, dos mercadores de livros, dos que liam nas ruas, dos músicos ambulantes, dos vendedores de ópio, da missa do galo, das mariposas de luxo, dos trabalhadores de estiva, das mulheres mendigas, dos crimes de amor, das mulheres detentas. Que passeio por um tempo tão diferente!
João do Rio também nos deixou contos antológicos. “O bebê da tarlatana rosa” é assustador. É o conto da perplexidade e do estranhamento. Do ponto de vista estilístico esse conto encontra-se na difícil fronteira que separaria o naturalismo do realismo. Na medida em que a reação do narrador parece ser o ponto central do enredo, encontram-se vários elementos que associariam o conto à corrente do impressionismo literário.
A narrativa é feita em primeira pessoa, a história é contada pelo tal do narrador não confiável. É um conto ambientado no carnaval antigo, que Ruy Castro explicou com riqueza de pormenor em recente obra. Refiro-me ao livro “Metrópole a Beira Mar”, uma imperdível massa de informações sobre o Rio de Janeiro da época da gripe espanhola em diante. João do Rio nos mostra nesse conto o engodo que consiste na pretensão de que os carnavais antigos eram seráficos, angelicais, nos quais a palavra de ordem era o divirtam-se, sem maiores problemas.
Em uma reunião de amigos ansiosos boas histórias (o passo lembra o Decameron, de Boccacio), Heitor Alencar conta o que viveu no carnaval. O carnaval tinha suas singularidades, era tempo de imprevistos e de aventuras. Momento onde tudo respirava luxúria, ânsias, espasmos, de pulos e de confianças ilimitadas.
Depois de vagar pelos elegantes bailes de carnaval dos vários clubes que havia Heitor desceu à “porneia da cidade”. Reclamou das pessoas ordinárias, e dos marinheiros a paisana. Na linguagem rica de João do Rio, o narrador menciona que se acanalhava e que se enlameava.
Em dado momento percebeu uma moça linda, fantasiada de um bebê gordinho e apetecível. Vestia uma tarlatana rosa. A tarlatana é um fino tecido utilizado na confecção de fantasias de carnaval. Heitor corre atrás da moça, surpreendentemente atraído. Dá-lhe um beliscão. A moça desaparece na multidão.
No dia seguinte, retorno ao ponto onde se encontraram. Procura. Não a encontra. Sente um beliscão. Pelo beliscão de ontem, é da moça a exclamação. Risos e beijos. Sente a máscara da fantasia, sente um nariz lindo, fino, bem desenhado, frio. Lembra a moça de que os bons amigos sempre se encontram.
Avança. Consegue um beijo molhado. Os lábios se tocam. Sente a ponta fina do nariz. Pede que a moça se desfaça da fantasia. Quer vê-la. Quer beijá-la. Quer possuí-la. Perde a cabeça e, num golpe, retira a fantasia que encobria aquela bela figura. Não revelo o que viu, o que encontrou. O interessado que busque a resposta, no fim desse belíssimo conto. O choro da moça revela que a única chance de afeto e gozo que tinha era no carnaval. Metaforicamente, é só no carnaval que se viveria plenamente.
Juridicamente, tem-se um erro de fato. Heitor desconhecia o que havia por trás da máscara da moça. Do ponto de vista do direito privado tem-se uma inequívoca reserva mental por parte da moça. No entanto, nada justificaria alguma reação violenta do narrador.
Filosoficamente, o conto parece colocar em discussão o valor fertilizante da verdade. Há a verdade de Heitor, que se sentiu traído pelo que viu atrás da máscara. E há também a verdade da moça, no contexto do insoldável mistério da alma humana, em permanente busca de afeto e de atenção.