Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antonio de Almeida

Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antonio de Almeida

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em “Memórias de um Sargento de Milícias” publicado originalmente no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, em 1852 e 1853, Manoel Antonio de Almeida (1830-1861) contrapôs a uma pretensa ordem burocrática que se insistia em se instalar no Brasil um curiosa (e deliciosa) desordem, que, de fato, existia no Brasil. Tem-se no pano de fundo um documento vivo do período joanino: “Era no tempo do Rei”, assim Almeida dá início à narrativa. Almeida formou-se em medicina, porém não exerceu a profissão. Faleceu muito jovem, num naufrágio

O enredo desse livro é sinuoso. Porque foi publicado em capítulos em forma de folhetim o narrador precisava multiplicar personagens e situações. Leonardo Pataca, português, vindo para o Brasil, no navio conheceu Maria das Hortaliças, uma simplória mulher. Com ela um filho, também Leonardo, que será pelo casal enjeitado. O menino, preguiçoso, desordeiro, mais tarde sentou praça na força pública, chegou a sargento. É o herói picaresco. Um delinquente, um malandro. Era uma criança intratável.

O mais profundo e inteligente estudo sobre esse livro, não casualmente, é denominado a “A ética da malandragem”, de Antonio Cândido. Outro crítico, Massaud Moisés, lembrava que o silêncio que havia cercado o aparecimento da estória em livro impresso constituía apenas um sinal das controvérsias e perplexidades que o autor levantou.

A narrativa é prosaica em tipos peculiares, como um oficial de Justiça (o Leonardo Pataca), uma senhora, Dona Maria, que não vivia sem uma demanda judicial, uma padre cheio de lascívia, uma cigana namoradeira, o Major Vidigal (o policial que impunha a ordem, há quem diga que existiu), entre tantos outros. Almeida crítica fortemente os agentes do sistema judiciário. Entre as várias possibilidades de interpretação que o livro sugere, percebe-se um grande desencanto para com o direito. É esse ponto que mais me interessa. Almeida é um realista.

Algumas passagens da obra comprovam essa visão negativa. Almeida tratava dos “meirinhos”, como então se chamavam os oficiais de justiça. Lembra que eram temíveis, e também respeitados, e que formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que as disputas judiciais eram elementos de vida. No outro extremo da linha de produção de justiça o autor assentava os desembargadores, lembrando também que os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os “terríveis combates de citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.” Almeida conhecia o assunto.

Almeida objetivamente criticava o jargão forense, isto é, a incompreensível linguagem de juízes e advogados, distante da língua real falada na vida não forense, no argumento de que se busca ser técnico. O narrador lembra também como era terrível se encontrar na rua “uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial!” Era uma citação, e a desgraça processual aí começava.

Os processos demoravam anos (parece que não mudou muita coisa). As despesas com advogados, procuradores, escrivães, exigiam muito dinheiro. O citado tinha prazo para esgotar suas economias e sua paciência. Ao invés de justiça, o processo prometia tempo, gastos.

Leonardo-Pataca, o meirinho da estória, passou uma noite na cadeia. Almeida aproveitou a passagem para hostilizar a classe dos oficiais de justiça, que estavam felizes com a detenção de um concorrente. No enredo há referências a uma mulher cuja paixão e razão de vida era a disputa judicial. Chamava-se Dona Maria. Era rica. O processo judicial era seu vício. As demandas eram o alimento da sua vida.

Quando acordava, pensava nos processos. Dormindo, sonhava com as demandas. Só falava nisso. Pelo longo hábito que tinha da matéria, “entendia do riscado a palmo, e não havia procurador que a enganasse”. Sabia todos os termos jurídicos e toda a marcha do processo. Era uma maníaca. Aborrecia a todos com quem conversava, exceto advogados, claro. Discutia testamentos e ações de despejo. Conhecia tudo o que ocorria no foro do Rio de Janeiro. Sabia quem litigava contra quem e quem decidia a favor de quem.

Escrevendo em meados do século XIX e captando costumes e ideias de uma geração anterior, Manuel Antonio de Almeida construiu interessantíssimo painel que nos mostra a ideia que se fazia do funcionamento da justiça. Tem-se desde uma quase idolatria, radical, obcecada e neurótica de Dona Maria, o que pode ser uma exceção patológica, até o medo para com os processos judiciais, o que era certamente uma regra incontestável. Inclusive para quem tinha razão.

Almeida era jornalista e com certeza conhecia a agonia das pessoas que litigavam. Histórias que acompanhava, que comentava e que noticiava. Era pessimista e era muito irônico. Pessimismo e ironia não anulam, no entanto, a lição de pureza, de inocência e também de honestidade desse belíssimo e imortal livro.

Para muitos críticos, é um livro que revela traços da escola realista, que entre nós será preponderante no fim do século XIX. De fato, acredito, nas aventuras de Leonardo há uma tentativa de se apresentar a verdade, um retrato fiel de personagens, uma percepção objetiva de vida, uma narrativa marcada por impressões sensíveis ao leitor, uma soma de efeitos do uso de pormenores expressivos. Parece-me um livro realista, muito antes do realismo.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 07/02/2020
Código do texto: T6860221
Classificação de conteúdo: seguro