Direito como Literatura, de Ronald Dworkin
Direito como Literatura, de Ronald Dworkin
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Parto da premissa de que o direito não é literatura. A literatura tem como traço característico a ficção e a liberdade de criação. O direito é realidade. Serve para resolver problemas da vida real. Pergunto, no entanto, até que ponto poderia haver alguma semelhança entre esses dois campos, o direito e a literatura. É um dos assuntos tratados pelo filósofo do direito Ronald Dworkin (1931-2013), norte-americano, que comparou a interpretação jurídica à interpretação de textos literários de ficção. No seu entender haveria semelhanças entre o desate de um romance e uma sentença judicial. Dworkin argumentava com muita elegância.
Sustento, com base em Dworkin, que poderia haver, no entanto, um ponto em comum entre a decisão de um problema jurídico e a interpretação de um romance: a busca do significado dos textos interpretados. Será? Dworkin exemplificou com os problemas que o estudo de Hamlet sugere. O personagem de Shakespeare realmente amava a própria mãe? Ou a detestava? O fantasma do pai realmente existia? Ou Hamlet apenas vivia uma manifestação esquizofrênica? Hamlet e Ofélia eram amantes, em tempo imaginário que antecede o início da peça? Hamlet tem como temas a morte, ou as gerações, ou a política. Depende do intérprete. Aplicada essa ideia à decisão judicial, relativismo maior não pode haver.
Críticos literários discordam a respeito dos problemas interpretativos que encontram. Dworkin não pretendia tomar partido. Queria apenas apreender “por que” e não “em relação ao que” discordavam. Enunciava uma hipótese estética, isto é, uma determinada interpretação literária procura demonstrar de que modo um texto deve ser lido, apontando um modelo que possa captar da forma mais artística (ou realística) possível o conteúdo do que se interpreta. Reconhecia que poderia ser criticado, no argumento de que sua interpretação seria confundida com criticismo. Temia ser apontado como relativista, ou que pudesse ser identificado como negativista, isto é, que discordasse de qualquer possibilidade de interpretação.
Concedia que sua hipótese estética poderia sugerir que estivesse aderindo a tendência então dominante (identificada com correntes pós-modernas) no sentido de que haveria várias interpretações, e não necessariamente uma interpretação única, melhor ou mais adequada, em torno de determinado poema ou de uma peça de teatro. Acrescentava que a hipótese estética não seria tão selvagem, ou tão fraca, ou inevitavelmente relativista.
Para Dworkin as teorias da arte não existiam isoladamente da filosofia, da psicologia, da sociologia e da cosmologia. Acrescentava que não haveria interpretação única. Um romance pode ser lido de várias formas. O intérprete da obra de arte o faz com base em conjunto que reflita determinada linha ou escola de interpretação, ou mesmo sua impressão de mundo.
Nenhuma percepção estética poderia ser verdadeira ou falsa. A interpretação é empreendimento, em face do que se deve comportar empiricamente. Dworkin indicava então o que entendia por teoria da reversibilidade, isto é, uma teoria da arte dependeria de uma teoria da interpretação, e a recíproca seria verdadeira. Insistia que a arte deveria ser entendida como comunicação entre falante e audiência.
Romancistas criam mundos. Intenções de autor não são como listas de compras, levadas a um supermercado (e o exemplo é típico na argumentação empírica e prática norte-americana); intenções de autor são estruturadas, são reagentes e atuantes em contexto muito amplo. Dworkin sugeria que há diferenças entre os papéis protagonizados pelo artista e pelo crítico. Criação e interpretação seriam instâncias muito distintas, embora ligadas por uma corrente, que teria como ponto comum vínculos indissociáveis entre criação, criador, interpretação, intérprete, crítica e crítico. A relação é cíclica em interpretação literária. Ronald Dworkin pretendia aplicar modelos de interpretação literária como método de análise jurídica.
Casos difíceis (hard cases, assunto recorrente nesse pensador) exigem mecanismos de interpretação que se parecem com exercícios de análise e de crítica literárias. O que ainda mais recursivo no direito norte-americano, onde o uso do precedente determina interpretação autorizada. A semelhança (ou dissemelhança) entre casos anteriores faz com que, segundo Dworkin, em versão livre minha, “na decisão de um novo caso cada juiz deve se ver como um sócio em um empreendimento de uma corrente complexa de decisões, estruturas, convenções e práticas, que são história; é seu trabalho dar continuidade a essa cadeia histórica (...)”.
O juiz interpretaria o que ocorreu antes porque tem como responsabilidade dar continuidade a este empreendimento. E ainda segundo Dworkin, nos termos do próprio julgamento é que o intérprete determina até onde chegam as decisões anteriores.
A interpretação jurídica é uma empreitada política. O melhor princípio e o melhor resultado devem marcar a atuação do intérprete. Para Dworkin, a função do intérprete e, no caso específico, do juiz, é a interpretação de uma história normativa encontrada, e não a criação de uma nova história.
Para Dworkin, juízes desenvolvem abordagens particulares de interpretação, na medida em que formam ou redefinem teorias políticas que se mostram sensíveis às questões levadas à decisão. A interpretação de casos particulares depende intrinsecamente da influência subliminar dessas teorias políticas, que o intérprete pode apontar como a sua filosofia jurídica. É o caso por exemplo, do juiz que vincula Direito e Economia, no sentido de que pretende decidir de modo a propiciar maior eficiência.
Dworkin pretendia explorar conexões indiretas entre teorias estéticas e políticas. Insistia que toda teoria da arte tem uma base conceitual epistemológica, reflete ideias sobre a experiência humana, autoconsciência, percepção e formação de valores. O mesmo se dá em âmbito de teorias políticas, e Dworkin exemplificava com o peso que o liberalismo confere à autonomia do indivíduo.
As técnicas de composição literária conhecem regras formais, que nem sempre aplicam. E não há limites para a criação do autor. Há também regras e formalidades no contexto da formulação de decisões jurídicas. No entanto, e aqui a diferença essencial, ao intérprete do direito não se permite a transgressão, que é, por exemplo, um princípio orientador da poesia. Não há (e nem poderia haver) na decisão jurídica o uso de metáforas, alegorias, analogias, símbolos, índices e metonímias que provocam impacto estético. E nem mesmo a imposição de valores pessoais do intérprete, ainda que seja difícil fazê-lo.
O direito não busca a beleza, como na arte. O direito deve à sociedade a aplicação dos enunciados normativos, com igualdade, segurança, fundamentação e coerência. O ponto comum entre direito e literatura seria, quando muito, a busca de significados. Até aí, como no Eclesiastes, nada de novo. A busca de significados é a significação da própria vida.