O homem das multidões, de Edgard Allan Poe
O homem das multidões, de Edgard Allan Poe
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Edgard Allan Poe é importante representante da literatura norte-americana. Nasceu em Boston, em 1809. Já havia uma universidade na região (Harvard), e a cidade era um importante centro cultural. Órfão ainda muito criança, foi adotado e criado por um comerciante escocês e sua esposa. Do pai adotiva tem seu segundo nome, Allan. Com o casal que o recebeu afetivamente foi para a Inglaterra, retornando para os Estados Unidos com cerca de 11 anos de idade. Há indícios que tivesse memória das experiências lá vividas, como se percebe em alguns de seus livros. Ainda que de Boston, a Atenas da América, estudou na Virginia, onde Thomas Jefferson havia fundado uma universidade, seu maior orgulho.
Poe rompeu com o pai adotivo e retornou para Boston. Uma relação difícil. Ainda persistia permanente ameaça de conflito com a Inglaterra. Poe alistou-se no Exército, porém foi dispensado, por indisciplina. O pai adotivo faleceu, e nada deixou para Poe em seu testamento. Com algum talento para narrativas, começou a escrever textos curtos. Casou-se aos 26 anos com uma prima, muito nova, a menina tinha 13 anos. Passou a viver em Nova Iorque, com a esposa e sogra. Ganhava a vida escrevendo textos de ficção para jornais e revistas. Foi um dos precursores da discussão relativa aos direitos autorais. Em 1845 publicou “O Corvo” um poema genial e aterrorizante. Dois anos depois enfrentou uma batalha perdida contra o alcoolismo. Conta-se que viveu deploravelmente seus últimos anos. Era um homem angustiado.
Poe é considerado o primeiro autor verdadeiramente americano. No entanto, sua fama ocorreu primeiro na Europa. Foi traduzido por Baudelaire, o que o fez conhecido na França. Há, assim, um Poe europeu, bem antes de um Poe norte-americano.
Poe foi um inovador. Criou um gênero (a ficção científica), uma mania (histórias de detetives) e uma obsessão (contos de terror). Lendo Poe pensamos que nossas consciências suportam uma carga tão pesada de horrores que somente descarregamos esse peso quando morremos. A sepultura pode ser o destino de nossas culpas. Por isso, não conseguiríamos revelar causas e responsáveis pela maioria dos crimes. Alguns sabem muito.
“O homem das multidões” é um de seus textos mais apaixonantes. Há alguns traços de algum intimismo surrealista. Em Londres, sentado em um café, um homem reconhecia que há uma satisfação positiva no simples fato de que respiramos. Viver é gostoso. Esse homem aparentava ter um grande interesse por todas as pessoas e coisas. O café se localizava em uma rua movimentada. A noite começava a cair. Observava a fauna encantadora das ruas. Notava as pessoas. Da mesa do café, constatava que iam e vinham. Para onde? E, por quê?
Pelo modo como aqueles londrinos se vestiam intuía que eram nobres ou mercadores ou advogados ou lojistas ou agiotas ou uma tribo de burocratas e escreventes. Havia também elegantes batedores de carteiras, jogadores medievais, e um tipo de gente que atraía os mendigos da rua. Havia também mocinhas humildes que voltavam do trabalho para lares sem alegria. Havia também prostitutas de todas as idades, e de todas as espécies. E havia ainda bruxas enrugadas. E carregadores e ébrios e exibidores de macacos. É certamente a visão de um americano em Londres.
Com o rosto colado da vidraça do café percebeu um homem que passava, cuja expressão era absolutamente peculiar. Imaginou quanta história se escondia naquele peito e naquela vida. O homem era magro. Roupas sujas e estragadas. Resolveu segui-lo.
A chuva começava a cair e a multidão se agitava. Uma enorme quantidade de guarda-chuvas aparecia não se sabe de onde. O homem andava pela rua principal, cortava travessas e retornava. O narrador nos conta que o homem da multidão apressava o passo com firmeza e segurança. Dava volta e refazia o mesmo caminho, refazendo e desfazendo a operação. Com muita agilidade, prossegue o narrador, revelava conhecer todos os caminhos possíveis.
O tempo passava, a noite avançava e a multidão diminuía. Quem o seguia não entendia os caprichos de quem era seguido. Avançou para regiões mais sujas e asquerosas da cidade. A metrópole do capitalismo continha suas contradições. À época as camas jamais esfriavam nos dormitórios das fábricas inglesas. O dia ia romper. O homem continuava andando e agora se misturava com aqueles que rumavam para o trabalho, misturando-se com a multidão de ébrios que resistia ao nascer do dia. O sol se ergueu. O narrador conta-nos que seu personagem estava fatigado.
O homem da multidão não parava. Recusava a solidão. Quem sabe, insinua o narrador, seria em vão segui-lo, nunca se pode saber dele ou de seus atos. Confunde-se com a multidão, lutando contra o isolamento, que é um isolamento que de algum modo a vida nos impõe. Uma pessoa perdida e solta na multidão parece a conselheiro íntima de nossa angústia. Tem-se a impressão que Poe pretendia unir arte e natureza, narrativa e sentimento de isolamento, demonstrando na existência alguma uma inutilidade sublime.
O homem da multidão vive só, não se sabe se na tristeza ou na alegria. Não conta com ninguém. Mas pode não ser diferente de quem presume que conta com toda a gente.
Para o homem da multidão família e amigos exigem uma espécie de renúncia, que pode ser a mais totalitária das pressões que sofremos. Talvez Poe nos sugira que somos, ou queremos ser, mais um da multidão.