O Senhor das Moscas, de William Golding
O Senhor das Moscas, de William Golding
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Seria empiricamente válida a hipótese de que nascemos bons e que a sociedade nos decompõe? A infância é sinônimo de inocência, isto é, as crianças não seriam más? A cultura nos transforma e, uma vez educados, seriamos infensos a qualquer forma de barbárie? Uma criança educada com os requintes de cultura estaria permanentemente livre de qualquer comportamento animal? O ser humano se transforma em face das dificuldades? São essas, entre tantas outras, as questões colocadas por William Golding (1911-1993) na estonteante novela “O Senhor das Moscas”.
Golding, inglês educado em Oxford, oficial da marinha da segunda guerra, Nobel de literatura (1983) leva, ao limite, a desconfiança para com a herança romântica de Rousseau, o filósofo contra os filósofos, genebrino que afirmava que há em nós uma bondade natural. Será que nascemos bons, ou nascemos maus, ou será que a pergunta estaria mal formulada? Golding destrói qualquer percepção ingênua da natureza humana.
“O Senhor das Moscas” se desdobra em uma ilha tropical, no meio da selva, em algum lugar do Pacífico ou do Oceano Índico. Depende da imaginação do leitor. Tem-se um tempo histórico indefinido e incerto. Ao mesmo tempo um tempo histórico presente e recorrente. A voz da concha, fogo na montanha, cabanas na praia, caras pintadas, cabelos compridos, sombras e árvores altas, sacrifícios para as trevas, visões de morte, conchas, óculos, castelos de pedra e gritos de caçadores são imagens e paragens desse livro distópico.
O enredo é linear. Durante uma guerra atômica, em Londres, pretende-se proteger algumas crianças. São colocadas em um avião militar e levadas para um lugar distante. O avião cai em uma ilha desabitada. Aí começa o flagelo. Ralf é a personagem central. Tem 12 anos, forte, corajoso, espírito organizado e ordeiro. Simboliza o líder democrático e bem-intencionado, mas autoritário, em nome de um valor que entende como comum. Piggy é um gordinho, míope, usa óculos (fundos-de-garrafa, diríamos aqui). Simboliza o intelectual instruído com propósitos práticos. Há também um vilão (crianças também são vilãs), Jack, também com 12 anos, que será o inimigo de Ralf. O menino é de uma ferocidade incontrolável. Em determinado ponto da história convencerá quase todos a se colocarem contra Ralf.
Com a queda do avião, Ralf e Piggy acreditam que eram os únicos sobreviventes. Ralf encontra uma imensa concha, que mais parece um instrumento de sopro. Produz um estrondoso som e os demais meninos subitamente aparecem. Reunidos, pretendem estabelecer alguma ordem no meio da desgraça. Realizam uma assembleia e fixam regras de convivência. A posse da concha, mediante consenso, é autorização para que se opinasse na assembleia.
Jack começa a fazer oposição a Ralf, que fora escolhido pelos demais para liderar o grupo. Jack ameaça a todos com o medo que decorre da existência de um misterioso animal que estaria vagando pela floresta. Jack torna-se um caçador de porcos e forma um pequeno grupo, em oposição aos que seguiam a Ralf, e que se comportavam como coletores. Jack e seu grupo começam a pintar os rostos, desenvolvem rituais de caça e se transformam em um bando agressivo.
Os grupos finalmente se dividem. Caçadores e coletores foram duas ordens distintas e aparentemente irreconciliáveis. Há necessidade de que mantenham uma fogueira acesa, como aviso a algum navio que por lá passasse. Porque o grupo de Jack se esquece da obrigação (era o turno deles) segue uma violenta discussão. Jack e seus seguidores colocam a cabeça de um porco numa paliçada no alto de um monte. As moscas circundam essa monstruosa figura: é o Senhor das Moscas. Avisam que se trata de um demônio e que apenas Jack e seus seguidores teriam o poder de controla-lo. É a metáfora do uso da crença e do medo na construção de um padrão comum de enfrentamento do alarme. Os antropólogos culturais diriam ser uma metáfora da religião universal.
Jack amplia sua liderança. Controla o grupo difundindo o medo e a falsa crença de que é o único salvador possível no caos. O grupo de Ralf é atacado pela noite. Roubam os óculos de Piggy. O conflito se intensifica. Matam Piggy. O conflito é sangrento. Ralf, sozinho, corre desesperadamente, como num sono de angústia. Chega na praia. Um oficial naval lá está e o protege. Pensa que as crianças brincavam. Quando percebe o que fizeram e o nível de barbárie ao qual chegaram, duvidou que garotos ingleses fossem capazes de tamanha ferocidade. Põe em dúvida os valores da cultura e da civilização. É a representação literária do leitor ideal.
“O Senhor das Moscas” é uma novela popular, levada para o cinema. A novela tem de tudo que ocorre na inata maldade humana. Não é uma ingênua narrativa de aventuras juvenis. É um seríssimo estudo sobre a condição do estado natural do homem. Leva, ao imponderável, a fragilidade e os limites dos instintos humanos. Só não há canibalismo, menos pelos resquícios vitorianos do autor do que pelo apelo moral de ingleses consumidores de literatura crítica. Parece que o pecado original consiste no simples fato de que estamos vivos. “O Senhor das Moscas” é um livro sobre a maldade humana, que nos é inerente. Coloca em dúvida diferenças substanciais entre adultos e crianças. Denuncia a ingenuidade romântica da nobreza selvagem. É uma narrativa definitiva da perda de nossa inocência. Não somos, e nunca fomos inocentes. Somos instinto, disfarçado numa razão astuta e numa malignidade dissimulada em normas de convivência que não respeitamos.