Górgias, Platão
Górgias, Platão
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Uma das mais seguras fontes de informação sobre a vida de Platão encontra-se na obra de Diógenes Laércio, “Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres”. Laércio teria vivido no século III. Segundo esse grande biógrafo, Platão nasceu em Atenas e talvez fosse descendente de Sólon, o grande legislador. É por Platão que conhecemos Sócrates, ainda que haja também referências a Sócrates em Aristófanes e em Xenofonte. Retoma-se o debate sobre a existência de Sócrates, que não deixou nada escrito.
Em Atenas, Platão fundou e manteve uma escola chamada Academia; conservavam livros e coleções científicas, debatiam todos os assuntos que interessam à natureza humana. A escola tinha esse nome porque funcionava nos jardins de Academos. O encontro com Sócrates teria mudado a vida de Platão; isto é, se Sócrates verdadeiramente existiu.
Precisamos ter cuidado com a leitura das obras do passado. Há os perigos do arqueologismo e do anacronismo, ameaças da leitura histórica, como ensinava José Alexandre Barbosa, um dos críticos mais lúcidos que no Brasil escreveu sobre literatura e cultura. À leitura de um autor antigo deve se agregar todas as leituras feitas até então. Assim, há um Platão lido na Grécia, um Platão dos romanos, um Platão dos padres da Igreja, há Platão para todos os gostos e ideologias. Para Umberto Eco, o moderno era ler Platão. E para muitos, tudo o que se fez depois de Platão são notas de rodapé aos textos desse filósofo grego.
No diálogo “Górgias”, Platão teorizou a oratória e a retórica. Mais uma vez, Sócrates é o personagem central do diálogo. Sócrates perguntou a Górgias que nome dar à arte que com proficiência ele dominava. Górgias respondeu tratar-se da oratória. Rebateu Sócrates: "Devemos, pois, chamar-te um orador?" Para Górgias, a oratória trataria da proficiência das palavras. Palavras, que segundo Górgias, cuidariam dos assuntos humanos mais importantes e nobres.
Platão antecipou-se a Aristóteles e esboçou a divisão da oratória em três gêneros: deliberativa, judiciária e de aparato. A oratória deliberativa visa convencer em uma discussão política. A oratória judiciária tem como objetivo convencer magistrados. A oratória de aparato ilustra uma comemoração ou um funeral. Respondendo a Sócrates, Górgias teria afirmado que a oratória consistiria no poder de, pela palavra, convencer os juízes do tribunal, os senadores do conselho, os debatedores na assembleia e em todo outro ajuntamento onde se reunissem cidadãos.
Sócrates continuava o diálogo definindo a oratória como agente de persuasão. Reconheceu, no entanto, que a oratória não seria a única forma de convencimento: a aritmética também consegue do valor demonstrado de suas verdades. Górgias esquivou-se, invocando que a retórica cuidaria tão somente de persuasão nos tribunais. Mais à frente, Sócrates concluiu que a oratória seria produtora duma crença e não do ensino sobre o justo e o injusto. E o mesmo Sócrates (no diálogo) rematou: "O orador, por conseguinte, não ensina aos tribunais e demais ajuntamentos o que é justo e o que é injusto; limita-se a persuadi-los".
Platão inseriu uma questão de âmbito ético que transcende seu tempo. O orador, para Platão, talvez não tivesse comprometimento com a justiça ou com a injustiça, com o certo, com o errado. Seu único compromisso seria com a persuasão. A crítica poderia ter sido dirigida aos sofistas. Estes últimos, vendedores do saber, proficientes na “ars bene dicendi”, na arte do bem dizer, andavam pelas cidades, discursando e convencendo, para ganhar a vida.
É inegável que certo esvaziamento ético da retórica contribua para seu desprezo. A tomarmos a retórica apenas como arte de convencimento, de persuasão, estaremos eliminando sua eventual utilidade concreta. Que finalidade teria? O convencer por convencer pode ao longo do tempo, diminuir o próprio orador, à luz de uma conceituação ética. Tal imagem é comprovada pelo ideário popular que vê no advogado, no político, o estigma da fala demorada, bonita sem dúvida, mas vazia de conteúdo. Daí a imagem negativa de bacharelismo. Há farta literatura denunciando o bacharelismo oco.
Para Górgias (no diálogo), "o orador está habilitado a disputar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto; por isso é mais convincente diante das multidões". Porém, para Sócrates (também no mesmo no diálogo), "o que eu chamo de oratória é parte de algo que não se conta entre as atividades nobres". E continuou, "parece-me se tratar de uma profissão não artística, mas própria do espírito certeiro, arrojado e por natureza hábil no entretenimento com as pessoas; ao seu gênero dou o nome de lisonjaria".
Platão refletiu sobre a oratória como um programa de ação política, questionando. os termos éticos da retórica. A retórica poderia enfraquecer o sentido moral das coisas. Assim, a educação não poderia ter bases e alicerces únicos na pretensão do bem falar. Sem referências com a moral, com a ética, com o vínculo com o bem comum, com o bem-estar, de nada vale a arte do convencimento.
Alguns afirmam que Maquiavel separou a moral da política, na medida em que os fins justificariam os meios. Eu não concordo com isso, e creio que Maquiavel também não concordaria. Nesse tema, sigo um importantíssimo intelectual brasileiro (Antonio Candido) para quem meios e fins se complementam em uma relação dialética. Um não justifica o outro. Não se pode, em nome de uma suposta eficiência, romper-se com referenciais de respeito ao próximo e à condição alheia. É o que também pode-se intuir na leitura de Górgias, um belíssimo diálogo da tradição platônica.